Uma ausência no trânsito

Todo dia, quando o ônibus passava na frente da papelaria, ela via o vendedor de camisa branca. Estava acostumada àquela presença como estava acostumada à banca de jornais na frente do terminal de trem, à árvore no meio da praça sempre vazia, ao desenho de um hambúrguer na fachada da lanchonete. Tudo parte da paisagem do caminho para o trabalho.

Já tinha tentado ler no trajeto, mas enjoava, não dava certo. Melhor olhar pela janela. Qualquer mudança chamava atenção: revistas novas na banca, uma loja que fechou, um muro derrubado, um homem dormindo na calçada. Um dia, o moço da papelaria estava sozinho, apoiando as mãos no balcão; outro dia ele mostrava qualquer coisa para uma cliente; ou fumava do lado de fora; ou ria, conversando na soleira da porta com uma funcionária do salão de beleza. E um dia ele não estava lá.

A passageira percebeu. Mas menos de um minuto depois já tinha esquecido o moço de camisa branca. O ônibus seguia, e pela janela passavam o carrinho de doces na porta da escola, a pintura que imitava pedras na fachada da oficina mecânica, um balcão com calcinhas a sete reais. Estava precisando de calcinhas novas, quem sabe ali não fazia um bom negócio.

Acontece que no dia seguinte o moço da camisa branca também não estava na papelaria, nem no outro e nem no outro. Atrás do balcão só se via uma loira de camisa branca. E a passageira se pegou pensando no moço, desta vez por mais de um instante. Quando percebeu que estava preocupada, ficou brava. “Ridículo!” Falou em voz baixa — e ficou ainda mais constrangida e nervosa quando percebeu que falou.

Tentou encerrar o assunto. O cara deve estar de férias. Ou não. Ou casou, ou foi cuidar da mãe doente no interior, ou foi demitido, ou ganhou na loteria. Ou morreu. E nada disso interessa, porque ele é um estranho. Estranhos nascem, brigam, procriam, morrem e a gente nem fica sabendo. Se fosse se preocupar com a vida de qualquer um que cruzasse seu caminho, ficaria louca. E, se fosse para se preocupar com alguém, que fosse com o homem que dormia estendido na calçada.

Mas, a partir desse dia, o trajeto do ônibus mudou. A paisagem sumiu, ocupada por uma discussão mental sobre o moço. Sobre o que teria acontecido com ele. Sobre como era inútil pensar nele. Sobre como era melhor pensar no céu azul, na festa da colega, na gata dormindo no sofá de casa. De vez em quando, pensava no céu azul, mas aí percebia que tinha esquecido o moço, e tudo voltava.

Pensava tanto que mal viu quando o moço reapareceu na papelaria. Tomou um susto. Nem tinha certeza se tinha visto certo quando se levantou, gritou “Motorista, para por favor” e correu até a porta. Ao pisar na rua, lembrou que nunca, nos oito anos em que pegava aquele ônibus, tinha descido no meio do caminho. Andou uma quadra até a papelaria. Entrou, viu o moço de perto pela primeira vez, passou para trás da bancada cheia de lapiseiras e o abraçou bem forte, por vários segundos. Só então, chorando, falou: “Tive tanto medo de que a gente não conseguisse se despedir”.

Pela Janela - Foto: Tahiana Máximo

(Foto: Pela Janela, de Tahiana Máximo, no Flickr)

Tolstói na condução

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Enfim, começaria a ler o livro.

Sentou no único lugar vazio do ônibus e começou ali o ritual. Primeiro passava a ponta dos dedos pela capa, sentindo a suavidade que somente aquelas encadernações lisas e duras proporcionavam. Estancou no pequeno declive que havia entre a capa e a lombada. Percorreu a ranhura de alto a baixo com a ponta do indicador. De relance, olhou para os lados para assegurar-se que não estava sendo observado e só então levou o grosso volume em direção às narinas. Inalou fundo a fragrância que vinha do interior. Sem perceber estava de olhos fechados. A frequência cardíaca sensivelmente alterada. Deslizou o tomo em direção à boca, obedecendo ao desejo repentino de mordiscar, de lamber aquela capa. A brusca freada do coletivo o trouxe de volta. A senhora ao seu lado o olhava com um misto de reprovação e interesse. Enfim, começaria a ler o livro.

Todas as famílias felizes são iguais. As infelizes o são cada uma a sua maneira. Adorava ler as primeiras frases dos livros, sobretudo as impactantes como aquela. Percorria estantes inteiras de bibliotecas e livrarias colecionando inícios. Muitos dos livros que leu, o fez motivado pela força da primeira linha. Julgava um bom critério. Não raro o livro desandava passadas algumas páginas, mas a força da frase inaugural compensava. A senhora ao seu lado se levantou pedindo licença. O ônibus já tinha vencido boa parte do caminho e ele nem percebera. Lá fora, as pessoas se acotovelavam no ponto para garantir seu lugar no coletivo. Trago seu amor de volta. Pague após resultado. A frase estampada no poste chamou sua atenção. Aquele podia ser outro bom começo de livro, de um livro que ele ia querer ler. Seguramente um livro sobre pessoas que, a sua maneira, eram infelizes. As operações comerciais envolvendo amores liquidados não lhe parecia fonte de grande felicidade, seja da parte que requeria de volta o amor, seja da parte que estava tendo o amor requerido. O único feliz da história toda parecia ser a pessoa remunerada para fazer a curiosa transação. Um senhor de pé junto ao seu banco, no corredor, lhe acertou com a maleta. Àquela altura, o ônibus já estava bem cheio. Ofereceu-se para carregar o objeto que lhe agredira. O senhor aceitou. Retornaria ao livro.

Todas as famílias felizes são iguais. As infelizes o são cada uma a sua maneira. Não gostava de ser interrompido e tampouco de se perder em digressões. Aquela frase, contudo, solicitava ser mastigada, remoída, ruminada, ainda que a quantidade de páginas que tivesse pela frente não fosse encorajadora de longas divagações. Se eu tiver que voltar, eu paro no meio do caminho e compro uma faca para cortar a garganta dele. Virou-se para trás. A moça franzina diminuiu o tom de voz. Gritava ao celular. Que mania aquelas pessoas tinham de berrar ao celular. Agora ele sabia bem mais daquela mulher do que gostaria, do que seria necessário saber sobre alguém com quem apenas se divide a condução. Uma assassina. Uma infeliz assassina que compra facas para cortar gargantas alheias e que usa sua própria garganta para gritar em conduções lotadas, fazendo saber a todos que não passa de uma assassina infeliz. Qual teria sido o crime do candidato à degola? O hobbie de acumular prelúdios literários talvez só se equiparasse ao de tentar adivinhar biografias de desconhecidos. A moça não queria voltar. Decerto que tomara aquele ônibus buscando evadir-se para sempre. Aquele mundo que deixava não era mais o dela. Uma tolice ter deixado o celular ligado. Agora a solicitavam (a chantageavam?), mas ela não voltaria. Se tivesse que voltar, iria armada. Pararia no meio do caminho e compraria uma faca para cortar a garganta dele. Mas não, não voltaria. Agora ele teria que se virar sem ela. Mas ele nunca aprendera a ser independente. Usaria de todos os recursos para que ela voltasse. Nem que tivesse que recorrer a um desses anúncios de poste. Trago seu amor de volta. Pague após resultado. Mas não. Ela não voltaria.

O senhor de pé ao seu lado pediu a maleta de volta. Iria descer. Santo Deus! Já estavam ali! O ponto final já se aproximava e ele não tinha passado da primeira frase. Retornaria ao livro.

Todas as famílias felizes são iguais. As infelizes o são… O tremor, que parecia vir de dentro de seu próprio corpo, o interrompeu no meio da frase. Também ele deixara o celular ligado. Pensou em ignorá-lo, mas a curiosidade não o permitiu. Podia ser algo importante. Além do mais, não suportaria sentir aquilo vibrando. Fechou o livro e apanhou o aparelho do bolso. Os cabelos brancos e o sorriso cansado do pai iluminavam a tela. Não atenderia. Com um toque, desligou a ligação e, ao fazê-lo, sentiu-se desligando o próprio pai. Mas também… por que sempre o ligava nos momentos mais inoportunos? O tempo, os remédios, a violência, eram sempre os mesmos assuntos, justo com ele que não se interessava nem pelo tempo, nem por remédios, nem por violência. Assim ele só murmurava concordâncias, mas nem lembrava da última vez que tinha prestado atenção ao que o pai falava. Justo com ele que tinha tantas coisas importantes pra fazer. Justo com ele que tinha aquele livro pra ler. Mas e se daquela vez fosse importante? E se ao pai tivesse ocorrido algo de urgente? E se não fosse ele quem lhe buscava, mas alguém que o encontrou na rua desacordado e localizou o contato do único filho na agenda do telefone? O pai sempre vinha com aquele papo de que pressentia a morte breve e que aquela sempre podia ser a última ligação. Claro que podia. Todas podem, ora. Mas teria que retornar. O remorso lhe incomodaria mais do que tempo, remédios e violência. Malditas relações pautadas pelo medo de perder. Malditas eram as famílias felizes, todas elas tão iguais entre si, todas elas tão diferentes da sua. Maldito era aquele livro.

O ônibus parou. Com o livro nas mãos, ele caminhou rápido em direção à porta e saiu. Junto à calçada, homens despejavam entulho em uma caçamba. Ele olhou mais uma vez para aquele livro e o lançou para junto do entulho. Deu às costas e seguiu o seu caminho.

Foi ser infeliz a sua maneira.


Créditos da imagem: Jhonatas Jesus Silva