Um ponto escuro

Antônio mastiga mexerica devagar. O sumo é azedo como o fim de tarde nublado que amargou meses da sua infância. Estava no sítio, tinha jogado metade da laranja no chão, pra irmã não chupar, quando a bisa veio com a ameaça: acaba de nascer um ponto escuro no seu coração. Se quisesse um peito limpo de novo, precisava fazer algo bom, como pedir desculpas e beijar a irmã. Mas, se de tanta maldade o coração já estivesse todo manchado, não tinha volta: seria podre pra sempre.

“Velha louca.”

O rádio toca alto. Ele gosta do trabalho. De ver os carros na margem enquanto segue outro ritmo. Nem o fedor do rio incomoda. Passa o dia na merda, sim, mas quem não passa?

O problema é depois. Tem medo de carregar o cheiro no corpo.

Cheiro de mexerica também gruda.

Há cinco meses, parou de pegar ônibus. Ficava confuso entre os odores de sabonetes, suores, salgadinhos e colônias, então decidiu trabalhar de bicicleta. Nem é tão longe, e pode se lavar no próprio banheiro, com calma, e não no vestiário da firma.

Pedala uma hora pra ir e uma pra voltar.

Em casa, deixa as botas no chão perto da porta. Tira a roupa ao lado do tanque, lava o macacão e as cuecas, pendura tudo no quintal e anda nu até o chuveiro. Aproveita a espuma do cabelo para limpar o rosto, as orelhas, o pescoço. Depois passa o sabonete em movimentos verticais, com cuidado para cobrir toda a pele, e se esfrega com uma esponja. Nas mãos, segue as instruções que viu no banheiro do posto de saúde.

Não cozinha, prefere ir ao bar. Cumprimenta todos, mas senta sozinho. Bebe cerveja, come qualquer coisa e espera Ana. Ela aparece logo, vinda do ponto de ônibus. Sempre tem história da viagem. Agora é a do bebê que mordeu forte o peito de uma mulher que amamentava no trem. Ana ri, toma três copos de cerveja e os dois seguem para a casa dele. Ela prefere jantar lá, pão com queijo, e às vezes só toma banho depois de transar.

Ele gosta do cheiro de sexo que fica no quarto e em Ana. Mas, nesta noite, fareja a podridão do rio no corpo ao lado. O que não percebe no próprio suor, percebe nela. Está estragado para sempre, como temia que estivesse seu coração. Ou como o pulmão da bisavó, que fumava e morreu de câncer.

Mesmo assim, se levanta e toma banho. Chega a desligar o chuveiro, mas não lembra se esfregou todas as áreas necessárias, então repete os procedimentos. Volta para a cama e ainda está acordado quando Ana sai lavada do banheiro. Por baixo do sabonete, permanece nela o cheiro do rio.

Antônio demora a pegar no sono, mas acorda às 5h, antes do despertador, com tempo para passar um café. Ela já está levantada. Depois de comer e escovar os dentes, os dois saem juntos, se beijam rápido no portão e seguem em sentidos opostos.

Na firma, Antônio bate o ponto, pega o rádio e anda até o píer. O chão está molhado, mas a chuva parou e parece que não volta. Se escorregasse,  ele poderia morrer ali, com o corpo cheio d’água. Ou já está mergulhado? Embarca para trabalhar.

Mais tarde, na bicicleta, volta a sentir o rio. Pedala mais rápido, mais rápido, mais rápido, aproveita o vento no rosto e chega em casa sem fôlego. No chuveiro, repete a lavagem três vezes.

Vai para o bar. Deixa o tempo passar, para ver se Ana aparece e para adiar a volta para casa. Apesar de beber mais do que de costume, não está bêbado quando o homem da mesa ao lado, vizinho de rua que ele cumprimenta todos os dias mas com quem nunca conversou, pergunta sobre a ausência de Ana. E, rindo, sobre o rio.

No instante seguinte, o homem da mesa ao lado está morto.

Com a garrafa quebrada na mão, Antônio corre duas quadras. Depois para, porque a água podre não vai mais embora.

Foto: Fernando Stankuns / Flickr

Foto: Fernando Stankuns / Flickr