95% do Universo

Antônio foi o meu amigo mais velho, enquanto eu planava nas ondas delinquentes dos dezesseis anos ele já tinha seus cinquenta e poucos, na época foi uma diferença impactante, assim visualmente para mim, pra ele nem tanto, hoje em dia nem um pouco. Antônio também foi meu amigo mais inusitado, o primeiro de toda uma vida. Ele era vegetariano, eu filha de carnívoros conservadores, ele acreditava em extraterrestres, eu adorava arquivo X, ele lia chico xavier, Jung e stephen hawking, eu lia robert a. heinlein, Poe e H.H, ele pirava em schubert e pasolini, eu fantasiava bergman e cazuza, ele gostava de francês, esculturas e morava com a mãe, eu amava um boy francês e detestava meus pais.

 

Nos conhecemos por acaso, durante meu estágio em uma pequena editora, eu gostava de passar um tempo depois de almoçar sentada em um banquinho da praça da esquina, onde alternava meus momentos de contemplação absorta e a consciência plena de tudo ao meu redor. Foi numa tarde comum que Antonio interrompeu meu devaneio  perguntando meu nome e se podia sentar ao lado, pensei que fosse mais um desses homens estranhos das praças e parques da cidade, esses que as mães dizem para ter cuidado, eu ainda não tinha o medo sexual do desconhecido, apenas a estranheza. Respondi que sim e falei meu nome,  ele fez uma brincadeira e riu. Nunca esqueci o som dessa risada, fresca como água corrente, um toque de pureza, não inocência, e algo timeless, a mescla de um senhor muito velho com um garoto a beira da puberdade. Me senti confortável imediatamente.

No dia seguinte voltei a praça, no mesmo banco, secretamente ansiei Antonio, eu não sabia muito bem  o que sentia mas era algo novo e real.
Ele apareceu dobrando a entrada da praça, devo ter sorrido enquanto ele vinha andando, magro e esguio com um sorriso no rosto, ele gingava despreocupadamente levado pelo vento, era bronzeado de sol (gostava de cuidar do jardim), o nariz longo e reto com o maxilar quadrado constituía um rosto solene, a boca delineada e cheia, vivacidade.
Seus olhos o entregavam, olhos escuros e pungentes envoltos em dezenas de finas rugas.

Ficamos a hora do almoço inteira conversando, eu nem senti fome. Falamos de miudezas do dia a dia, o tamanho do mar e de Amyr Klink, lembro que rimos muito.
Durante um ano inteiro eu passei todas as minhas tardes com Antônio, até alguns sábados. Descobri que ele tinha algumas perturbações, era turrão demais com coisas absolutamente sem importância e passava longos períodos melancólicos nos quais não trocávamos uma palavra sequer, sentados no banquinho. Apenas ficávamos ali, um do lado do outro.
Ele dizia algumas coisas que eu não compreendia, eu dizia coisas que ele já não sentia, de certa forma me tornei seus olhos e coração, jovem outra vez. Uma vez corri pra ele após terminar um namoro besta mas importante, esses primeiros, ele me abraçou e chorou comigo, chorava sem pudor, lagrimas escorriam no colo como gotas de chuva ácida em terra seca, matando um pouco da sede mas destruindo no processo. Eu me senti melhor e ele disse  ‘ Tudo é matéria Marina, matéria solida, matéria líquida, matéria escura…algumas delas nós ainda não conhecemos, entendemos…apenas isso’. Eu disse ‘Matéria em decomposição né’, gargalhamos.

Trocavamos segredos como quem troca de figurinha no colégio, passeávamos na feira comendo pastel e discutindo alto Joana D’arc a foucault a camisas novas que eu insistia que ele devia comprar e ele respondia ‘mas pra quêêê’ com aquele jeito arrastado, divertidamente displicente, acho que algumas pessoas ficavam confusas ao nos ver mas nós não víamos ninguém, o nosso amanhã era sempre hoje.

 

A vida seguiu seu curso e por inúmeros motivos nós perdemos o contato. Palavra louca essa, contato, se contato também é toque então perdemos mas se toque pode ser sob a superfície então não perdemos nunca. Há pessoas que você nunca perde, essas existem como um silêncio significativo entre duas notas, mesmo acorde, gosto de pensar assim.

Hoje senti saudade de Antônio, quase dez anos depois de tudo entre nós e o mundo, tudo é matéria, de um jeito ou de outro, Antônio é indissolúvel.

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Eco

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Vagando em pensamentos ela repousa seu olhar no chão, o som das portas se fechando parece tão longe quanto seus devaneios e o rumor de vozes compõe uma harmonia hipnótica. É despertada de sua inércia quando seus olhos finalmente focalizam o objeto de seu despejo, o pé sobre o chinelo, repara em seu formato, suas veias finas levemente azuis e a sua magreza aguda, bonito a sua maneira, ao contrário dos seus, sempre tivera vergonha dos seus. Uma mulher se levanta e começa a balbuciar ajuda, diz que perdeu tudo na enchente, um garoto no colo do pai toca sua guitarra de brinquedo, hoje é feriado. Paixão de Cristo, o nome soa engraçado para ela que não conhece bem nem um nem o outro, o trem aumenta sua velocidade e adentra as entranhas da terra deixando tudo mais escuro, o zunido em seus ouvidos incomoda e ela busca refúgio na janela agora desprovida de paisagem. Surpreende se fitando outros olhos que devolvem o espanto na mesma intensidade, olhos que parecem receosos mas que não se desviam, mal piscam, seriam olhos antigos ? Não, eram olhos no meio do caminho, olhos que carregam mas que também querem ser levados, duas rapinas a beira de um mergulho, sentindo se invadida ela os fecha.

A voz do trem anuncia a chegada da próxima estação. Outono. Abre os olhos. O reflexo volta a ser janela.

Rorschach

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Laranja dá fome, nada nessa merda é à toa pensou ao olhar as paredes. O aniversário do seu filho era hoje, sete anos, o garoto amava frango, frito, assado, no palito, empanado… então escolheram seu lugar favorito para comemorar, um fast-food-cocoricó.

O cheiro de gordura impregnante só não era pior do que a cara dos atendentes cansados, mal pagos e mal alimentados, um deles parecia a beira das lágrimas e a outra se roçava nele sempre que fazia um pedido, coisas que só ele parecia notar. Sua esposa estava animada conversando com suas amigas do trabalho, em especial Maristela, com quem se dava bem.

Maristela, que delícia de mulher, pensou engolindo a bunda da coxinha.

– Ricardo olha o seu filho ali brigando! O júnior tá chorando! Vai ver o que está acontecendo, por favor!

Ele, que agora mastigava o salgado saboreando a bunda de Maristela acordou do transe quando uma coxinha passou voando e se espatifou na parede a sua frente, frango, catupiry e ketchup escorregaram até o chão, as crianças gargalharam empurrando umas às outras e Ricardo olhou fixamente aquela massa amarela no chão.

Os fiapos de frango e catupiry lhe pareciam outra coisa, pareciam os cabelos caracóis, dourados, da cabeça de seu velho pai,  agora esmagada e espalhada pelo chão.  Ketchup pra todo lado, ketchup nas mãos.
Aos poucos a massa foi mudando, começou recordar de seus próprios cachos castanhos. Levou as mãos à cabeça lisa como quem bagunça os cabelos, na faculdade eram tão fartos, lembrou de seu apelido…cazuzinha… “ Ô cazuzinha bola aí uma fininha”.
Pela terceira vez a massa mudou de forma, se transformou nos pentelhos loiros de Maristela, abrindo o mar vermelho e afogando tudo ao redor. Ketchup pra todo lado, ketchup nas mãos. Sorriu.

– Ricaaardo!! O que você tá fazendo assim parado?? Limpa essa sujeira antes que alguém escorregue, quantas vezes eu tenho que falar? Você não tá me ouvindo??

Olhou para a mulher ainda com os restos da coxinha na mão. Não que não houvesse Amor, o problema era todo o resto, o problema era a coxinha.