Crianças

Encontram-se no parque. Cada um com seu rebento. A mulher com o filho dela. O homem com a filha dele. Nunca se viram. São as férias de julho e o parque está cheio. Faz sol. As crianças correm pro tanque de areia. Homem e mulher sentam-se no mesmo banco. Conversam.

– Que bom que hoje saiu sol, não?

– Nem me fale… não aguentava mais aquele frio.

(…)

– Eles nunca se viram e parece que já são amigos desde sempre.

– Como?

– As crianças… parecem que são velhos amigos, mas acabaram de se conhecer.

– Ah, sim, eu vi. Uma graça, né? Meu filho mal viu sua menina e foi logo a convidando pra brincar.

– É… as crianças são mesmo demais! Minha filha estava lá entretida fazendo outra coisa e mesmo assim aceitou brincar com seu filho.

– Ah, esse menino é muito sociável. É a capoeira, né, a capoeira estimula bem a socialização. Ele não perde uma aula, toda quinta de manhã, desde que aprendeu a andar. Era uma graça, bebezinho, o berimbau dava dois dele.

– Pois é, nem me fale. Esporte é tudo pra uma criança! Vê só minha menina, com essa gentileza toda, essa paciência, foi tudo o kung fu. Foi mesmo um achado. O kung fu estimula muito isso. Por isso que toda quarta e sábado, ela sai da aula de circo e vai diretinho pro kung fu!

– Circo?

– Sim, malabarismo. É ótimo pra coordenação, pra destreza, pro equilíbrio. E é bom estimular isso desde cedo, né?

– Ah, sim, mas quanto a isso eu não posso me queixar do karatê. Concentração, equilíbrio, disciplina, respeito aos mais velhos, meu menino desenvolveu tudo isso graças ao karatê. Terças e sextas desde os dois anos! Veja que deu resultado, né? Olha a perfeição dos castelinhos de areia dele, olha com que destreza que ele fez aquela pontezinha ali.

– Sim, sim… mas veja só como ela organizou as pazinhas, da maior para a menor, alinhadinhas ao lado dos baldes… aquilo tudo é kumon, minha amiga, é o kumon dando resultado ao vivo e em cores. Tardes de quinta e manhãs de domingo. Com ela não tem pra ninguém na matemática, no raciocínio lógico, além da concentração, destreza, capacidade para lidar com desafios, tudo isso vem junto, né?

– Ah, mas o meu muleque nem precisou de kumon. O colégio dele é montessoriano, sabe.  Daí é outra coisa. Com dois anos ele já sabia amarrar o sapato com autonomia, se servir sozinho e comer de garfo e faca com desembaraço.

– Está certo, mas você já leu Piajet? O construtivismo é que é a tendência, viu? Antes dos quatro minha menina já sabia as quatro operações matemáticas e conversava em inglês com qualquer um!

– E mandarim ela sabe? Porque saber inglês é meio século vinte, né? O importante agora é dominar o mandarim. A China vai mandar no mundo, meu caro! Potência! Olha só como tem chinês por aí, de cada quatro pessoas no mundo, uma é chinesa. Meu menino aprendeu o mandarim junto com o português! Pronuncia bem cada fonema, fala bem até os mais nasalares, parece um nativo! Até que lhe cairiam bem uns olhinhos puxados com essa pele bronzeada linda que ele tem. Também, né, treinando surf do jeito que ele treina.

– Mas estamos há mais de cem quilômetros do mar!

– Sim, é verdade, mas para que servem os finais de semana, não é mesmo? Meu marido desce com ele pro litoral todo sábado de manhã e só voltam domingo a noite. Este contato com a água é muito importante!

– Ah, sim, com certeza! A natação é um esporte completo! Minha garota aprendeu a nadar antes dos seis meses. Foi ótimo pra ginástica rítmica e pros saltos ornamentais que ela pratica hoje. Medalha de ouro dois anos seguidos nas competições estaduais. Ano que vem ela vai disputar o nacional, daí sim eu quero ver!  Você nem imagina o orgulho! E além do mais, os jogos olímpicos estão logo aí, né?

– Ah, sim, sim, os jogos olímpicos, claro… estão logo aí… meu menino tem grandes chances na esgrima e até mesmo no arco e flecha. Ele treina os dois desde que saiu das fraldas aos oito meses. São esportes maravilhosos para a formação do caráter e para o desenvolvimento da confiança. Não menos importantes que o halterofilismo que ele pratica desde os três, às segundas, logo depois da aula de yoga, que ele faz junto com o coleguinha que ele conheceu no curso de gastronomia. Tudo ótimo pro conhecimento do corpo e pro controle emocional.

– Ele usou fraldas até os oito meses? Minha menina jamais usou fraldas! É muito anti-higiênico. Existem práticas muito mais assépticas e modernas que essa. Não há nada mais moderno na Alemanha e nos Estados Unidos. Você não assiste o Fantástico? É preciso apenas estar atento aos sinais! Ser um bom observador! Não foi você mesmo quem me falou sobre conhecer o próprio corpo?

– Bom, se é uma técnica alemã meu filho deve conhecer, já que fez intercâmbio na Alemanha dos quatro aos cinco anos. Fez um curso de filosofia e retórica para crianças numa escola cristã, porque além do corpo, também é preciso desenvolver o espírito, não é mesmo?

– Minha filha também fez intercâmbio. Ela trabalhou em uma ONG canadense que combate a fome na África!

– Ah, é? E meu filho já foi embaixador da ONU pelos direitos humanos!

– E a minha já ganhou o Nobel da Paz. Duas vezes!

(…)

A tarde avança. Homem e mulher seguem conversando. Ela sobre o filho dela. Ele sobra a filha dele. Conversam muito e com tanta obstinação que por um momento deixam de prestar atenção nas crianças suadas e remelentas, seus filhos, que brincam no tanque de areia do parque. Se a conversa não estivesse assim tão interessante, eles talvez reparassem no momento em que a menina, seis anos, indigna-se com o menino, seis anos, que lhe atirou de caso pensado areia na cara, e lhe responde com um sonoro safanão no meio da fuça. Talvez também reparassem no momento em que o menino, agudamente magoado, lhe devolve o safanão com mais força do que o recebeu e lhe dirige palavrões dos mais cabeludos que aprendeu numa letra de funk. Os dois engalfinham-se na areia manchada de sangue. A tarde cai no parque. É férias. Homem e mulher seguem sentados no banco. Conversam.

O encontro

– Tudo bem?

Lembrou-se que esta noite dormira mal por causa dos pernilongos e também por causa do calor abafado que fazia na sala. Lembrou-se que dormira na sala porque sua presença no quarto, ao lado da mulher, já não era mais bem vinda, sobretudo depois do que acontecera ontem. Lembrou-se do café fraco que tomou no bar da esquina e da sensação estranha, misto de descrença e impotência, quando viu que o balconista levava o café para ser requentado no microondas. Lembrou-se do sabor de petróleo que tinham os cafés, sobretudo os fracos, quando requentados no microondas. Lembrou-se do Largo da Pólvora lotado e de como o cobrador não lhe respondera ao seu “bom dia”. Lembrou-se da angústia que sentiu ao perceber que o ônibus chegava ao seu destino e de que tinha que trabalhar mais uma vez naquele escritório estéril e olhar mais uma vez para o bigode ensebado e tingido de seu chefe. Lembrou-se de que tivera que almoçar sozinho, porque não tinha estômago forte o bastante para olhar a nenhum de seus colegas enquanto comia. Lembrou-se do gosto de ranço da carne e na quantidade absurda de sal que por descuido caíra em sua salada. Lembrou-se que se importara com isso por causa de sua hipertensão galopante, que havia lhe obrigado a tomar aqueles remédios caros, depois dos últimos exames. Lembrou-se de que ainda era segunda-feira. Lembrou-se da necessidade que tinha de ir aquele bar, depois do expediente, e do enfado, provavelmente mal disfarçado, que sentiu ao encontrar aquela figura conhecida e que agora lhe perguntava se estava bem. Lembrou-se do inútil que seria ser sincero.

– Tudo. Tudo ótimo e você?

O vão entre o trem e a plataforma

vaoEram só ele e ela no último dos trens noturnos com destino à Luz. Subiram no Butantã. Ele e ela no mesmo vagão. Ambos só desceriam no final. Ele perguntaria as horas, ela responderia. Ela perguntaria o nome, ele responderia. Para emendar, ele perguntaria o dela. Falariam da lentidão do veículo, do frio do ar condicionado, da sorte que tinham por terem conseguido pegar o último trem. Antes de chegar na Paulista, já saberiam onde um e outro moravam e o que gostavam de fazer nas tardes de domingo. Quando estivessem na República e o auto-falante anunciasse que a próxima era a última estação e que por gentileza desembarcassem todos, já teriam trocado os telefones e combinado algo para o fim de semana seguinte. Na Luz, se despediriam com um beijo no rosto e com a promessa de mais conversas como aquela. Próximo domingo, ela diria. Próximo domingo, ele diria. Formariam um belo casal, desses que a gente não imagina separado. Teriam filhos. Dois. Um casal de gêmeos lindos. Teriam feito tudo e talvez até um pouco mais, mas antes mesmo de Pinheiros, ela tombou a cabeça sobre o vidro e se perdeu distraída lendo as placas de publicidade. Teriam feito tudo e talvez até um pouco mais, mas assim que sentou no banco e ajeitou as pernas, ele levou mecanicamente a mão ao bolso e pegou seu telefone. Foi jogando cartas no aparelho durante todo o trajeto para não sentir o tempo passar. Ao chegar na Luz, cada um saiu por uma porta. Ela virou para a direita. Ele virou para a esquerda. Nunca se lembrarão de nada disso.

A prodigiosa sorte de Fortunato Dias de Ventura

trevoDesde muito pequeno, Fortunato Dias de Ventura descobriu que tinha uma relação bastante estreita com a sorte. Foi logo em seu primeiro verão, na pequena cidade de Quimera, quando sua mãe lhe deixara desfrutar de seu primeiro picolé, que tal intimidade com as coisas do destino se revelou pela primeira vez. O menino refestelava-se com aquele bloco róseo de gelo, corante e açúcar (sobretudo açúcar, muito açúcar) quando sua mãe, a atordoada Sra. Lenora Dias, pôde ler no palito de madeira que o rebento tinha direito a outro sorvete igual aquele, numa daquelas promoções que existem desde sempre, que todo mundo conhece, mas que de fato, de verdade mesmo, ninguém nunca ganhou nada. A mãe, que aos trinta e tantos anos já se considerava pessoa bastante azarada, sobretudo quando se lembrava de suas escolhas matrimoniais (o que não vem ao caso neste relato) nunca tinha ganho nada nesta vida, além de maridos infames e contas para pagar. Enquanto pegava o menino lambuzado pelo braço e caminhava de volta à sorveteria para retirar o grande prêmio, lembrou-se da vez, muito parecida com aquela, em que era menina, cercada de outras tantas meninas, suas amigas, e dera um pulo de alegria ao perceber que tinha uma mensagem escrita no palito de sorvete. As meninas logo se acercaram e começaram a rir às gargalhadas, ao lerem que aquilo não dava direito a nada, a não ser a alguma sensação de consciência tranquila, já que o que estava escrito no pequeno palito lambuzado não era nada mais benfazejo do que um “Este palito foi feito com madeira de reflorestamento. Preserve a natureza: não o jogue em vias públicas”. A pobre Lenora, depois de meses sem ter coragem de botar a cara na rua, nunca mais dera bola para promoções e palitos. Até o dia em que nasceu o pequeno Fortunato Dias de Ventura.

O mais curioso, e o que talvez aqui ninguém acredite, é que o sorvete que Fortunato Dias de Ventura ganhou naquela manhã, também havia sido moldado em torno de um palito premiado, para grande azar do sorveteiro, que viu seu faturamento sensivelmente atingido por aquele acontecimento apoteótico. O fato é que a partir daquele dia todos os sorvetes que o menino ganhava vinham afortunadamente com o palito premiado (e olha que Fortunato gostava muito de sorvetes!). O dono da sorveteria, muito desconfiado, sensivelmente temeroso de sua falência iminente, teve como ideia abrir uma ou outra embalagem de sorvete, de modo aleatório, para ver se aquilo era mesmo sorte ou erro do fabricante, algum lote que viera desgraçadamente mais sortudo que os outros, quem sabe. Logo se viu, no entanto, que esta hipótese poderia ser facilmente descartada. O sorveteiro, a  esposa do sorveteiro e os netos do sorveteiro entupiram-se por dias e mais dias de sorvetes e de decepções, e nada mais liam ao final de cada uma daquelas guloseimas geladas, do que a decepcionante inscrição “tente outra vez” nos palitos de madeira. A tristeza estava estampada em seus rostos melados, sobretudo quando entre um fracasso e outro, viam entrar pela sorveteria aquela figura cada vez mais rechonchuda e rosada que apontava do colo da mãe para qualquer um dos picolés da geladeira que, invariavelmente, vinham premiados.

O sorveteiro, resignado, resolveu tirar proveito daquilo e apostou numa estratégia de marketing, palavra até então desconhecida entre os habitantes de Quimera. Botou na fachada da sorveteria, em letras vermelhas e garrafais, uma faixa com a seguinte inscrição “Sorvete premiado. O prêmio já saiu aqui 47 vezes!”. No começo até que deu certo. Os moradores de Quimera, sensivelmente atraídos por aquele dado expressivo e profundamente incomodados pelo forte calor que fazia naquele triste e tenebroso verão, fizeram filas na porta da sorveteria para adquirirem também o seu tão sonhado palito premiado. Só que todos os outros habitantes da cidade eram pessoas de sorte apenas mediana e, portanto, jamais conseguiam o direito a outro sorvete. Alguns saiam cabisbaixos, lamentando a pouca sorte, outros saiam furiosos, muito irritados, xingando o sorveteiro e toda sua família de embusteiros de uma figa, que não deviam brincar assim com a esperança das crianças. E foi assim que começou a guerra fria, a verdadeira, assim chamada pelo gelo com que os moradores de Quimera passaram a tratar toda a família do vendedor de gelados. Uma injustiça, é preciso que se diga, um comportamento realmente deplorável dessa gente, já que como se sabe, o sorveteiro não tinha poderes sobrenaturais que o permitisse conhecer de antemão onde estavam os palitos premiados. O único aspecto sobrenatural dessa história toda era realmente a prodigiosa sorte de Fortunato Dias de Ventura.

Chegou a hora, como haveria de chegar, que o menino cansou de tomar tanto sorvete e passou a recusar até mesmo os sabores mais extravagantes e açucarados, aqueles que sempre o atraiam. Seus pais resolveram então guardar como um troféu o último dos palitos premiados para se lembrarem no futuro daquela fase áurea do garoto. A sorveteria, no entanto, não resistiu ao verdadeiro boicote exercido por seus antigos clientes e fechou suas portas. O sorveteiro e sua família fizeram as malas e se mudaram para a Sibéria, de onde eram seus parentes mais próximos, e nunca mais voltaram para Quimera, de modo que nunca souberam que seu antigo estabelecimento havia se transformado numa espelunqueira lanchonete, dessas que mais parecem um botequim, com banquinhos no balcão e vitrine de coxinhas, torresmos e ovos azulados na entrada. O que distinguia o recente estabelecimento dos demais de sua espécie era a presença, um tanto sorrateira e disfarçada, nos fundilhos mesmo do recinto, já próximo aos banheiros, de uma bancada para o jogo do bicho, a nova tendência no submundo do entretenimento da cidade.

A viúva Noêmia nunca fora mulher de grandes vícios (e tampouco de grandes virtudes) mas apaixonou-se perdidamente pelo bicheiro, o atarracado Sr. Osório, desde a primeira vez que, saindo distraída do banheiro do bar, dera de cara com aquele sujeito que acabava de atender um cliente (um senhor que arriscou uma bolada no burro). Dona Noêmia, que era muito inteligente, decidiu apostar naquela relação e passou a frequentar o bar regularmente, nunca se esquecendo de fazer sua fezinha, nunca sem ver Osório. Isso seria apenas mais uma história, como tantas outras histórias, de alguém apaixonado que se vê cometendo insanidades nunca antes imaginadas, apenas pelo simples deleite de passar um tempo a mais ao lado da pessoa amada, não fosse a viúva Noêmia avó de um menino tão sortudo, o ditoso Fortunato Dias de Ventura, protagonista desta história.

Ciente das alvissareiras conquistas que o neto já realizara no mercado das guloseimas geladas, a viúva Noêmia resolveu contar com o garoto para suas ótimas intenções no mercado matrimonial. Todo sábado levava ao neto a cartela colorida do jogo de bicho e pedia ao menino rechonchudo que apontasse com os dedos para a imagem do animal que mais lhe apetecesse no momento, que fizesse uma escolha aleatória como outrora já fizera com os picolés. Não há quem não conheça a máxima que diz que um raio não cai mais de uma vez no mesmo lugar, mas como todos aqui já sabemos, essas coisas só funcionam para pessoas de fortúnio medíocre, como a grande maioria de nós. Para pessoas magistrais como Fortunato Dias de Ventura, o raio cai exatamente no local em que ele quiser e no momento em que ele quiser. Assim, como é fácil de se supor, a viúva Noêmia passou a ganhar no bicho absolutamente todos os sábados. E só não jogava todos os dias porque tinha pudores, tinha receio de que a boca pequena melasse o clandestino negócio de Osório, como já tinham feito antes com os açucarados sorvetes.

De tanto ganhar no bicho, a viúva Noêmia comprou uma modesta fazenda e chamou Osório para morar com ela. O atarracado Osório gostava muito de sua vida clandestina, sempre conhecendo gente nova, conversando com os apostadores de saída de banheiro, aquela gente aliviada que nunca fazia sua vida cair na rotina. Entretanto, a possibilidade de se unir a uma pessoa tão bem aventurada, tão primorosamente afortunada, fez com que Osório pesasse bem e decidisse pela vida no campo, longe dos bichos, ou melhor, longe do jogo do bicho e perto dos bichos de carne, osso e úberes e também perto da sorte da viúva Noêmia. Mas como a sorte de Noêmia não era de Noêmia, mas sim de seu neto, e como o seu neto não era algo que se pudesse carregar por aí, o interesseiro Osório acabou se desinteressando por Noêmia, que nunca mais ganhou nada fácil nessa vida, e viu o seu negócio agrário se desmoronando tão fácil quanto veio. Numa tarde de sábado, quando tudo parecia que não podia piorar, Osório caiu do burro. Era um burrinho pedrês, último bicho que sobrara na fazenda, já velho, sem dentes e que não aguentou o peso do atarracado Osório e o lançou longe. Osório morreu na hora e a viúva Noêmia ficou viúva de novo.

Enquanto isso, Fortunato Dias de Ventura crescia. Sua avó Noêmia foi morar com ele e com seus pais. A velhinha já não saia de casa, temerosa de se apaixonar de novo e de contrair uma nova viúves. Estava, digamos, um pouco confusa das ideias e passava o dia repetindo sequências de números e bichos e anotando obscuros hieróglifos em seu bloquinho cor de abóbora. Fortunato Dias de Ventura, agora um rapaz de pelos emergentes, olhava tudo aquilo muito assustado, mas buscava não contrariá-la. Deixava a velha senhora em paz – avestruz, águia, burro, borboleta – e saia todo dia para cuidar de sua própria sorte, sempre ao lado do pai, o agitado Sr. Eduardo de Ventura, porque a mãe, muito religiosa, não gostava de se envolver naqueles assuntos escusos, que já haviam levado à falência uma família de pessoas tão honestas, como era a do sorveteiro, além de ter deixado louca sua sogra, antes pessoa de ideias tão razoáveis, salvo pelo fato não desprezível de ter educado seu ignaro marido.

Se antes o menino Fortunato Dias de Ventura apenas se refestelava com inocentes picolés de palitos premiados ou gostava de apontar seu dedo roliço e rosado para uma cartela colorida cheia de animais – como teria gostado de fazer qualquer criança de dedos menos roliços e de sorte menos promissora – agora a coisa estava um pouco mais séria, um tanto mais profissional. O Sr. Eduardo de Ventura havia se tornado uma espécie de empresário, manipulando a sorte do filho em casas de apostas, em corridas de cavalos e até mesmo, por que não, no bingo da paróquia de nossa senhora de Monte Serrat, frequentado desde sempre pela Sra. Lenora (que se enchia de vergonha toda vez que via o marido, aquele desqualificado, chegando com o menino naquelas sagradas tertúlias dominicais). A estratégia do pai era bastante clara e sagaz. Por mais sorte que Fortunato tivesse, por mais certo que fosse que ele poderia ganhar o que quisesse e quantas vezes quisesse, isso não poderia acontecer sempre. A estupenda sorte chamaria muita atenção e poderia pôr a perder aquele negócio tão auspicioso. Então o segredo era manipular os palpites do rapaz e perder de vez em quando, às vezes até mesmo um dia inteiro, tudo para não causar suspeitas. Nesses dias inglórios, se Fortunato escolhia uma cartela, o pai logo tratava de substituí-la. Se o rapaz apostava num puro sangue lusitano, o pai declarava apoio a um quarto de milha qualquer. O segredo era sempre fazer apostas miúdas nestes casos de derrota certa e deixar os palpites polpudos para quando Fortunato tivesse a liberdade de escolha. Nessas horas eles quebravam a banca, como dizem nesses meios, e imediatamente voltavam pra casa, para grande desgosto de Fortunato, que não gostava de se ver tão castrado em suas venturas com o destino.

Nos primeiros meses do negócio a economia doméstica foi sensivelmente progredindo. A casa ganhou uma reforma de arquitetura primorosa, com três andares e um mirante com vista para as montanhas mais distantes. Até mesmo a viúva Noêmia saiu beneficiada dessa história toda. Construíram para ela um altar em um quartinho nos fundos da casa, onde ela adorava imagens em tamanho real dos vinte e cinco animais do jogo de bicho, inclusive o elefante que sozinho já ocupava quase a metade do ambiente. A velha senhora, cada vez mais enrugada e com olhar progressivamente mais sombrio, caminhava em círculos pelo recinto, carregando um castiçal de velas coloridas com nauseante odor de flores mortas. Repetia palavras impronunciáveis e quase não se alimentava mais. O prato de comida que a Sra. Lenora deixava todo dia na porta de seu quartinho, quase sempre voltava intocado. A mãe de Fortunato, aliás, a despeito do vertiginoso progresso econômico pelo qual passava sua família, não conseguia concordar com a origem sibilina daquela fortuna toda e se mantinha ainda mais afastada daquele ser abjeto que era seu marido, conforme ela fazia questão de lembrar. Aproveitando-se das grandes proporções que havia atingido sua residência e das grandes distâncias de corpos que isso proporcionava, certa vez mandou colocar os pertences de seu abominável cônjuge para fora do quarto e mandou a criatura se instalar em um dos novos dormitórios do terceiro andar, bem longe dela, que desde sempre havia se recusado a sair do térreo. Nem acreditava que depois de tantos anos conseguiria passar uma noite sem ter que ouvir aqueles barulhos – e os consequentes odores – que vinham dos mais recônditos buracos do marido.

Fortunato Dias de Ventura, por sua vez, a despeito de sua sorte tão prodigiosa, andava pela casa taciturno e cabisbaixo, tropeçando em trevos de quatro folhas que somente ele conseguia enxergar no jardim. Não tinha amigos e não ia para escola, já que o pai não queria que suas energias fossem desperdiçadas em expressões de álgebra e no estudo de línguas pouco úteis para os negócios do destino. O Sr. Eduardo de Ventura passava o dia longe do casarão, envolto em atividades nunca bem esclarecidas, sabido que sempre foi para todos que ele não trabalhava desde antes do nascimento do menino. A economia doméstica sempre fora capitaneada pela mãe, que mesmo agora com o advento dos prodigiosos desígnios do filho, continuava a produzir mandalas e filtros dos sonhos que vendia nas feiras de artesanato da cidade. O casarão passou tempos assim, da mais modorrenta rotina, com cada um de seus ocupantes suficientemente distantes uns dos outros, a ponto de mal se cumprimentarem quando, por ventura ou descuido, calhavam de se trombar em algum corredor. Com a vizinhança, tampouco, exerciam qualquer tipo de relacionamento desde os tempos já saudosos dos palitos de sorvete. A casa era uma ilha na cidade de Quimera e passaria despercebida pelos vizinhos, não fosse o quadradinho sempre iluminado do quarto da mãe no térreo, os estranhos ruídos que vinham do quartinho da viúva Noêmia nos fundos e as saídas furtivas do menino com o pai, sempre que este aparecia, vindo sabe-se lá de onde, mal a noite começava a se pronunciar, para buscar o menino e levá-lo cidade afora a fim de explorar sua estrondosa sorte.

Certa vez, no entanto, o Sr. Eduardo de Ventura não apareceu para buscá-lo. A lua aparecia no céu de Quimera e Fortunato já se mortificava ante a perspectiva de mais uma noite perdida em casas de apostas e mesas de pôquer. Chegou até mesmo a dormir no banco de cimento diante do portão do casarão, onde sempre esperava seu pai. Mas naquela noite ele não apareceu. E tampouco apareceu na noite seguinte e sequer mandou algum recado para explicar suas ausências nas noites e noites seguintes. Fortunato, sempre obediente, não deixou de esperá-lo, noite após noite, diante do casarão. Sua mãe, compadecida e sempre em silêncio, aparecia de tempos em tempos com um prato de comida, um cobertor para as noites frias e depois de algumas semanas, quando percebera que o filho passara a dormir a madrugada toda ao relento, trouxera-lhe um de seus filtros dos sonhos, para lhe proteger a noite.

Passados três ou quatro meses de espera ininterrupta, certa noite o menino foi novamente surpreendido pela figura da mãe, que de camisola branca e com uma vela na mão, apareceu diante dele, que já dormitava no banco de pedra, ao relento, e pronunciou solene “Já não se ouve mais nada. Ela também se foi”. Fortunato olhou para mãe confuso, sem saber se estava acordado ou ainda dormindo, mas logo deu-se conta de que tudo estava num absoluto silêncio, um silêncio inaudito, como há anos não se fazia. Já não se escutava mais os incompreensíveis murmúrios da viúva Noêmia. No quartinho dos fundos, apenas as chamas de velas pela metade e o olhar penetrante de vinte e cinco animais que agora poderiam dormir tranquilos.

Muito se especulou sobre o sumiço repentino da viúva Noêmia. A reinauguração do silêncio não poderia passar incólume na pequena Quimera, já que os murmurosos lamentos da velha senhora podiam ser escutados até mesmo das cidades vizinhas, assim como se podia sentir de longe o cheiro nauseabundo de suas velas coloridas. Alguns afirmavam, e juravam certeza, de que tinham avistado a viúva Noêmia se esvanecendo como fumaça, pela chaminé nos fundos do casarão, até se perder entre as nuvens mais distantes do céu noturno. Outros juravam que tinham visto Noêmia em uma praia do Marrocos, comprando tapetes e outras quinquilharias junto a um bem apessoado senhor, que muito parecia ser o pai de Fortunato Dias de Ventura. Nada disso, porém, conseguiu alterar a rotina de Fortunato, que noite após noite, sempre no mesmo horário, se punha diligente diante do portão de ferro para esperar atento o seu tão demoroso pai.

O tempo fizera do casarão um prédio decrépito e cinzento. A despeito da imensidão da casa e do pó que se acumulava nos móveis, a ponto de não ser mais possível vê-los, a mãe se recusara a ceder às pressões da especulação imobiliária. Em todos aqueles anos, após o sumiço do marido e da viúva Noêmia, sempre a atormentavam com milionárias propostas de compra do antigo imóvel, para construir em seu lugar um gigantesco shopping center, o arauto da modernidade que teimava  em contaminar a pequena Quimera. Os anos haviam passado e a sorte de Fortunato Dias de Ventura há tempos que não dava mostra de sua portentosa presença.  Há anos que ele não entrava em casa, temeroso de que o pai podia aparecer em algum momento de descuido, para se valer uma vez mais de sua prodigiosa sorte. A Sra. Lenora, mesmo com o alivio que sentia pela ausência do marido, passou a dormir ela também todas as noites ao relento, ao lado de Fortunato, o acompanhando naquela espera, revezando com o filho os momentos de sono e vigília. Certa vez, enquanto Fortunato dormia com a cabeça em seu colo, reparou que pela primeira vez na vida se sentia cansada. Olhou para as mãos, com a atenção que nunca costumava olhar, e notou que tinham lhe aparecido manchas marrons e veias calibrosas, que a vida sempre tão agitada e envolta no mais rigoroso trabalho, a tinha impedido de perceber. Ela envelhecera. Olhou também para as mãos do filho, para seus dedos magros de unhas encravadas e lembrou-se do menino de dedos roliços que apontavam certeiros para sorvetes de palitos premiados. Ele também envelhecera. Estavam velhos e sós, em uma cidade que não mais lhes pertencia. Eram somente os dois naquele imenso casarão abandonado, cercado por filtros dos sonhos e lembranças. Foi quando Lenora recordou-se da única boa ideia que seu desprezível marido um dia já teve na vida, que foi a de guardar como lembrança o último dos palitos premiados, na época em que o pequeno Fortunato Dias de Ventura passou a se desinteressar por sorvetes.

Na manhã seguinte, ainda antes do sol aparecer por inteiro no céu de Quimera, Fortunato Dias de Ventura despertou com o toque suave de sua mãe em seus cabelos ralos e grisalhos. Nem bem Fortunato a olhou e já compreendeu tudo. A Sra. Lenora lhe disse de forma terminante, sem margem para contestações “Vamos, venha comigo. Ele já não voltará mais”. Fortunato a olhou sério, tão fundo como jamais a tinha olhado, e nem por um segundo pôs em dúvida as palavras da mãe. Reparou que ela trazia o velho palito premiado nas mãos. A sorte é que essa era uma daquelas promoções que existem desde sempre, que todo mundo conhece e que nunca, absolutamente nunca acabam. E foi por isso, que mesmo quarenta e tantos anos depois, que Fortunato Dias de Ventura pôde entrar novamente em uma sorveteria, ao lado de sua mãe, para trocar um palito premiado por um sorvete. O já alquebrado Sr. Fortunato  hesitou um pouco diante da geladeira de picolés, com sabores ainda mais açucarados que os de sua infância, e resolveu não titubear muito, dando apenas vazão a sua antiga intuição. Escolheu o seu favorito, o de groselha, e saiu com sua velha mãe em direção à praça, onde sentaram no mais absoluto silêncio para tomar sorvete e mais nada, destreinados que estavam da prática do diálogo. Foi então, passadas algumas bocadas, dadas com cautela já que os dentes de Fortunato já não suportavam mais aquelas baixas temperaturas, que ele pôde ver incrédulo, que nenhuma letra havia impressa naquele palito totalmente desprovido de sorte, adornado apenas pelo logotipo da centenária fábrica de sorvetes de Quimera. A mãe não se assombrou. Pelo contrário, sem dizer uma só palavra, mas com o olhar que tudo evidencia, parecia já saber desde sempre que nada daquilo importava. Foi então que Fortunato Dias de Ventura olhou fundo nos olhos da mãe e se lembrou de tudo, de sua presença muda, porém tenaz, absolutamente eterna, até mesmo nos atos menos venturosos de sua vida. Foi quando teve a certeza, como jamais tivera antes, de que tinha realmente uma sorte prodigiosa.

Dossiê Marco – Operação Saideira

marco

DO DIÁRIO DE MARCO, 15 DE JULHO DE 2013

Todas as escolhas que já fiz na vida combinam perfeitamente bem com cerveja. E com maconha também, é verdade, mas vou me ater à cerveja. Se eu fosse boêmio ou minimamente conseguisse tomar álcool sem ter a sensação de que estou tomando um remédio, e veja bem, não qualquer remédio, mas um remédio amargo, desses que a gente só toma quando é estritamente necessário, eu ia achar isso muito bom, realmente muito vantajoso. Mas não. Absolutamente não é assim. Eu preciso confessar, e minha crescente covardia só me permite fazê-lo aqui, que é absolutamente penoso para mim engolir um copo de cerveja e, se o faço – e sim, o faço – é apenas porque quero ser sociável, quero ter amigos, ser aceito num desses grupos de valdevinos que escolhi pra mim.


DA AGENDA DO CELULAR DE MARCO, SEMANA DE 14 A 20 DE JULHO DE 2013

  • dom_14:

14:00 – Encontro com o grupo de teatro (levar as coisas do Chico)

17:00 – Niver do Tuco no Bar da Ieda

  • qua_17:

21:00 – Futebol na TV (comprar comida)

  • qui_18:

19:00 – Oficina de escrita criativa (fazer o exercício do Caetano)

21:00 – Leitura de poemas no Bar do Tim

  • sáb_20:

11:00 – Oficina de escrita criativa

14:00 – Sarau

21:00 – Niver da Cecilia no Bar da Glória


DO DIÁRIO DE MARCO, 18 DE JULHO DE 2013

Acho que começo a perceber alguns padrões nos hábitos de meus amigos. Digo de meus amigos, mas talvez isso possa se estender a qualquer tomador de cerveja. Quando alguém te convida para assistir a uma partida de futebol, porque sim, esta pessoa é sua amiga e sabe que você gosta de futebol, na verdade esta pessoa está te convidando para tomar cerveja e para fumar maconha – mas vou me ater à cerveja, acho que já disse isso antes. Quando você chegar ao local combinado, todos estarão paramentados, é verdade, com a camisa de seus times de coração e você ficará empolgado com isso. Valeu a pena ter deixado o conforto de seu sofá para ver o jogo com pessoas tão animadas, com verdadeiros torcedores. Mas quando estiver chegando a hora do jogo e você ficar ansioso com a proximidade da peleja – afinal, você ingenuamente pensa que está ali para ver a uma partida de futebol – os torcedores já estarão tão animados consigo mesmos e com todos os preparativos que envolvem a partida, que provavelmente se esquecerão de ligar a tevê. Você, que gosta de futebol e que está ali para ver futebol e que até já tinha se programado todo para ver a partida no conforto de seu lar, provavelmente se sentirá constrangido em atrapalhar toda aquela alegria, em ser o único preocupado com uma coisa tão menos importante como uma partida de futebol. Provavelmente encherá seu copo e se unirá a turba de torcedores elevados, que não precisam de uma partida para torcer. Negará até a morte que você não está imensamente feliz com toda aquela patuscada, mas ficará atento a cada mínimo sinal de fogos que venha do vizinho – e como você ficaria feliz em ser amigo do vizinho nessas horas. É verdade que tudo pode ocorrer de uma forma um pouco menos drástica. Sempre pode haver um tio que se lembrará de ligar a tevê. Mas você pode ter certeza de que ela será uma tevê de tubo, de catorze polegadas, cheia de chuviscos – minorados talvez pelo chumaço de bom bril xuxado em cada haste de uma antena piramidal – e que provavelmente ficará lá esquecida em algum canto, longe o suficiente para que seu constrangimento e seu incorrigível senso de sociabilidade permita que você se aproxime.


DA GRAVAÇÃO CLANDESTINA FEITA PELA DRA. MILENA VERÍSSIMO, EM OCASIÃO DE CONSULTA PSICOLÓGICA PRESTADA A MARCO EM 14 DE AGOSTO DE 2013

Eu juro que já tentei de tudo, doutora, mas a verdade é que não consigo me envolver com outro tipo de gente, com gente mais Fanta Uva, se é que a senhora me entende. Me chame de preconceituoso, doutora, mas ou você bebe Fanta Uva ou você é legal. Eu sou uma completa aberração. Alguma coisa certamente deu errado em algum ponto de minha formação. Eu bebo Fanta Uva E sou legal. Ao menos é assim que eu me vejo. Jamais, doutora. Ninguém jamais pode saber que eu faço isso e espero que a senhora mantenha essa informação no mais absoluto sigilo. Estou certo que o fará. Se não posso confiar numa doutora, em quem poderei confiar, não é mesmo? Faço tudo escondido, na calada da noite, bem longe dos meus amigos. E que delícia que é botar aquele treco roxo na boca, a sensação inebriante daquelas bolinhas descendo goela a baixo. A senhora toma Fanta Uva, doutora? Bom, não importa, mas estou certo de que não toma. Logo se nota de que a senhora é uma pessoa agradável. Esses dias li uma reportagem alertando para o risco de se ter câncer ao se consumir Fanta Uva. O cara que disse isso só pode ser do tipo que toma Fanta Uva, gente chata pra caralho. Eu nunca consegui me envolver com esse tipo de gente. Veja bem, na escola eu até tentei e era confortável. A gente se reunia e podia tomar nossa Fanta Uva a vontade, sem ter que esconder isso de ninguém, mas e depois, doutora? Depois era cada um pra sua casa antes das oito. Não haviam as gargalhadas espalhafatosas, as promessas de amizade eterna, as conversas desinteressadas entrando pela madrugada. Nada, doutora, nada disso combina com Fanta Uva. Tudo isso combina com aquela bebida amarga que eu me esforço tanto para tomar. Não se pode ter tudo, não é mesmo, doutora? Ou será que pode, doutora? Algum desses livros aí atrás da senhora diz que pode, doutora? Eu preciso de ajuda, poxa!


LISTA DE COMPRAS ENCONTRADA NA POCHETE DE MARCO EM 12 DE SETEMBRO DE 2013

  • 3 pães
  • 100 gramas de mortadela
  • pipoca para microondas (bacon, se não tiver, provolone)
  • 1 pote de Nutella
  • macarrão
  • Toddynho (a embalagem com 3 da promoção)
  • 2 litros de Fanta Uva
  • 1 caixa de bom bom (daquela que vem com o Sensação)
  • papel higiênico (pacote com 8)

DO DIÁRIO DE MARCO, 23 DE SETEMBRO DE 2013

Voltemos aos padrões de comportamento. Acho que estou ficando perito nisso, um antropólogo dos botequins. Mas nem é preciso tanto para perceber que um copo de cerveja sempre precisa estar cheio, copos vazios ou meio vazios (neste mundo não há copos meio cheios) são considerados verdadeiros disparates, um desrespeito ao grupo. É dever de todos ficar atento para que nenhum copo na roda esteja vazio. Ao menor sinal de escassez deve-se imediatamente pegar a garrafa mais próxima e proceder pelo preenchimento de todos os copos do grupo. Encher apenas o próprio copo e devolver a garrafa à mesa é a pior infâmia que se pode cometer. Negar que alguém complete seu copo vazio, a segunda pior. Amizades antigas terminam por coisas assim. Por isso, e admito que sou bastante ingênuo por só perceber isso agora, uma estratégia óbvia para não ter que beber doses insuportáveis de cerveja é manter o máximo de tempo possível o copo cheio. Nada de bancar o boêmio e descer tudo de uma vez. Não. Isso só fará com que alguma alma pretensiosamente caridosa encha meu copo imediatamente e eu tenha mais uma sessão de tortura pela frente (veja bem, ninguém faz isso com qualquer outra coisa. Ninguém vê seu pão na chapa pela metade e pede ao chapeiro pra já ir descendo outro pra você. Absolutamente, não. Isso só funciona com cerveja e com outras dessas coisas amargas). Então, devo bebericar aos poucos e até mesmo fingir uns goles. Ser o cara que serve a cerveja nos copos também me rende muitos pontos e ajuda a disfarçar minha artimanha.


DO DIÁRIO DE MARCO, 24 DE SETEMBRO DE 2013

Começo a me arrepender do que escrevi ontem (será que é isso que chamam de ressaca moral?). Ser o único sóbrio num antro de ébrios (e dissimular isso, santo Deus) não seria, no mínimo, desonesto?


DO DIÁRIO DE MARCO, 01 DE OUTUBRO DE 2013

Preciso parar com essa história de tomar suco em público. Ontem quase aconteceu o pior. A Simone almoçava na padaria e quase me pegou com a boca no canudo. Ia ser uma lástima.  Cobri a cena bem em tempo com o Jornal do Metrô.


DO DIÁRIO DE MARCO, 05 DE OUTUBRO DE 2013

Acho que ontem passei dos limites. Jogar cerveja fora escondido é um pouco demais. Até mesmo pra mim.


DA GRAVAÇÃO CLANDESTINA FEITA PELA DRA. MILENA VERÍSSIMO, EM OCASIÃO DE CONSULTA PSICOLÓGICA PRESTADA A MARCO EM 07 DE OUTUBRO DE 2013

Chega uma hora nessa vida, doutora, que temos que tomar uma decisão, temos que mostrar, afinal, quem somos, pra que viemos, o que queremos nesse mundo. A senhora pediu e aqui estou eu, finalmente resoluto, por mais difícil e improvável que esta decisão seja, mas decido agora o que já não posso mais tardar: vou começar a beber! Pois posso repetir, caso a senhora não tenha entendido, caso o nervoso tenha embargado minha voz: vou começar a beber! Não, não desse modo vergonhoso como bebo hoje, quero ser um bebedor de verdade, como meus amigos, sim, quero ser como eles! Não, não acho que me diminuo com isso. Longe disso. Se escolhi segui-los, preciso do pacote todo. Não há como ser boêmio sem a boemia. Me entrego. Rirei com eles das piadas ébrias e dançarei nu se preciso for, só não quero mais manter-me sóbrio. Será que consigo, doutora? Estou delirando?


DO DIÁRIO DE MARCO, 12 DE OUTUBRO DE 2013

O orgulho transborda em mim. Ontem consegui tomar dois copos cheios. Sigamos. Um dia de cada vez.


DO DIÁRIO DE MARCO, 19 DE OUTUBRO DE 2013

Dois copos de novo. Sem avanços. Sem retrocessos. Um pequeno progresso, na verdade: emiti dois comentários minimamente razoáveis e convincentes sobre a superioridade das cervejas artesanais em relação às industrializadas. Obtive olhares respeitosos. Pesquisei na internet.


DA GRAVAÇÃO CLANDESTINA FEITA PELA DRA. MILENA VERÍSSIMO, EM OCASIÃO DE CONSULTA PSICOLÓGICA PRESTADA A MARCO EM 23 DE OUTUBRO DE 2013

Tenho me esforçado muito, doutora. Acho que não tenho motivos para envergonhá-la. Esses nossos encontros têm sido realmente decisivos. Confesso que no começo achava tudo isso uma grande perda de tempo, quase uma charlatanice. Desculpe, doutora, se não confiei na senhora, mas acho que aqui posso falar a verdade, não posso? Bom, deixa pra lá. Mas o fato é que depois que passei a encarar a cerveja não mais como uma simples bebida, como algo que servisse apenas para me matar a sede, mas como a chave de um portal que me transportasse para um outro estado de espírito, como uma poção mágica que me desse acesso ao lado mais obscuro das pessoas que quero perto de mim, ah, doutora, quando passei a ter essa perspectiva das coisas, tudo ficou bem mais fácil. Afinal, poções mágicas não precisam ser docinhas, não é mesmo, doutora? Pelo contrário, se quero passar para uma outra dimensão, para um outro estágio de existência, tenho que ser submetido a um rito de passagem e ritos de passagem precisam ser bastante dolorosos, não é mesmo, doutora? Diga que sim, doutora! Por favor! Diga alguma coisa doutora, veja bem, qualquer coisa, doutora! Eu não estou indo bem? Estou, não estou?


DO DIÁRIO DE MARCO, 02 DE NOVEMBRO DE 2013

Amanhã… ah, amanhã! Aniversário do Wagner no Isca Bar. Acho que chegou a hora de queimar umas etapas.


DO DIÁRIO DE MARCO, 03 DE NOVEMBRO DE 2013

É hoje!


DESCRIÇÃO DA CÂMERA DE SEGURANÇA DO ESTABELECIMENTO “ISCA BAR” NA NOITE DE 03 DE NOVEMBRO DE 2013, FEITA PELA PERITA DRA. CAROLINA DO VAL

O investigado chega ao estabelecimento de nome “Isca Bar” por volta das 20h45. Está sozinho. Traja camisa polo branca, calça jeans e pochete. Encontra duas pessoas numa das mesas da calçadas e as cumprimenta. Aparenta estar sóbrio e com perfeito controle de suas ações. O investigado se senta junto às duas pessoas. Ato contínuo, o garçom aparece com um copo americano e enche seu copo de cerveja. O investigado sorri com discrição ao garçom e quando este sai, propõe um brinde. Todos riem e bebem juntos. O investigado esvazia seu copo em duas grandes investidas. Um pouco antes das 21h mais duas pessoas se unem ao grupo. O garçom é solicitado novamente. Chegam mais garrafas à mesa. O copo do investigado é enchido mais uma vez. Risadas. Após três investidas, o copo do investigado fica vazio. A pessoa que chegou por último, uma mulher, imediatamente enche o copo do investigado. Ele diz algo e todos riem. Ele ri muito. Dá uma primeira investida no copo e começa a tamborilar os dedos na mesa. Parece inquieto. Um segundo gole. Alguém diz algo e o investigado bate com a palma da mão na mesa e ri alto. Desta vez, ninguém o acompanha no gesto. Por volta das 22h, mais alguém chega à mesa. O investigado completa o terceiro copo. Olha para os lados. Parece muito inquieto. Segue tamborilando os dedos e passa a também a bater a perna direita no chão. Com um gesto, chama o garçom e solicita mais garrafas. Emite um comentário. Aparentemente só ele ri. O garçom chega com as cervejas. O investigado pega uma das garrafas e começa a encher todos os copos da mesa, aparentemente proferindo comentários chistosos a cada um. Alguns lhe sorriem de volta. Alguns parecem se incomodar. Enche seu próprio copo, deixando cair boa parte do conteúdo no chão. O investigado passa a dançar de forma descompassada com o copo na mão. O investigado ri de modo espalhafatoso. Duas das pessoas mais próximas se afastam do investigado com olhares aparentemente assustados. O investigado tira a pochete e a atira na mesa. Segue dançando sozinho com o copo nas mãos. São 22h30 quando ele termina o quarto copo. Todos estão de pé. O quinto copo é enchido. Um gole. O investigado fica em silêncio. O investigado vomita. O investigado desmaia. São 23h12 quando chega a ambulância.


DO ATESTADO DE ÓBITO DE MARCO EMITIDO PELA MÉDICA LEGISTA DRA. THAIS ROCHA, EM 04 DE NOVEMBRO DE 2013

Coma alcoólico diagnosticado às 0h12. O falecido era solteiro e não deixa herdeiros.

passarinhos

passarinhos

mancha vermelha colore os bigodes do gato que dorme no pé da mangueira. restos de penas trançadas nos dentes paralisa as pernas do menino que corre. penas verdes. verdes como as penas do periquito australiano. hoje ele não cantou com a chegada do menino. não presta nem pra cuidar de meia dúzia de pássaros mesmo. é disperso como o avô. gaiolas espalhadas pelo quintal. os canários também se foram. a maritaca. a maritaca agonizante no vão entre duas pedras. menino petrificado com o inferno diante de si. crianças gargalham no muro, fazem troça do menino que chora. chamam o gato de volta. o pai surge na porta da cozinha. para de chorar, menino, seja homem! Ande, limpe toda essa sujeira e vem almoçar! 

mancha azulada colore a poeira da calçada cinza e faz brilhar os olhos da menina que corre. três quatro anos e ainda se impressiona com manchas azuladas em calçadas cinzas. olha o carro, menina, já disse pra olhar pros lados. homem aborrecido com a menina que corre, olha as horas. precisa trabalhar e o parque já tomou a manhã toda. venha cá, criatura, nossa casa é por ali. seus olhos já não reparam em manchas azuladas. passarinho, papai, olha só um passarinho dormindo ali!

menino que perdeu a fome tenta alimentar a maritaca morta, o grão de milho inerte no bico da ave. o peso da culpa em sua costas, não prestava nem para cuidar de aves. essa passarinhada toda só servia pra fazer barulho mesmo, pra me emporcalhar o quintal! Ande logo, rapaz! lágrimas do menino escorrem no corpo imóvel da ave em suas mãos. para de chorar seu menino maricas, não botei homem no mundo pra chorar por maritacas! era o pai furioso a lhe arrancar a maritaca das mãos. era a ave morta atirada aos cães que passavam. A maritaca, papai, era a maritaca do vovô… eu prometi pra ele…

o pai caminha em direção a menina e custa a descobrir o azul entre as folhas. menina se agacha e toma a pequena ave com as mãos em concha. olhos fechados da ave, a cabeça inclinada pro lado. meninos correm medrosos dali. somente o pai os percebe. correm diante da visão do homem e da menina, o estilingue toscamente escondido nos bolsos. quero levar ele pra casa, papai, a gente pode fazer uma caminha, brincar com ele, olha como dorme papai, deve estar com muito sono. o pai olha pros lados como em busca de um auxilio, ignora o que fazer, o que dizer para a menina que não sabe o que é a morte. ele também não sabe. a situação é urgente e ele desiste de ter pressa. querida, este passarinho… 

penas de todas as cores se juntam à poeira de um quintal em fim de tarde. menino empoleirado na mangueira já não chora. era homem e não devia chorar por simples maritacas. eram apenas passarinhos e ele nunca mais perderia seu tempo a brincar com passarinhos. o avô nunca tivera juízo mesmo, nunca foi um homem sério. barulho e sujeira, seu pai o ensinara, apenas barulho e sujeira e ele não devia se ocupar com essas coisas tolas. devia estudar, ser um homem que se ocupasse de coisas realmente importantes, um homem como seu pai, um homem que não se importasse com a morte de passarinhos.

…querida, este passarinho está morto. menina surpresa, o olhar demorado pra ave nas mãos, os dedos passando suave pela plumagem azul. os olhos vermelhos do pai, olhos que não podem chorar por passarinhos. como o pezinho de feijão, papai? menina olha séria pro homem que já não consegue falar. ele olha pra baixo, pra longe, olha pra dentro de si. olha pra uma tarde. para uma mangueira no centro de um quintal cheio de penas e gaiolas espalhadas. olha pro seu avô. sim, querida…como o pezinho de feijão. a voz embargada do pai, o olhar sereno da menina. terra, papai, vamos enterrar ele debaixo daquela árvore. obediente, o pai cava o buraco sob o olhar atento da menina, o buraco pro passarinho azul que some por baixo dos punhados que caem. silêncio. pai e menina não se olham, os olhares ocupados com o montinho de terra no chão.  finda a tarefa, as mãos sujas de terra, a menina abraça o pai em sábio silêncio. o passarinho está enterrado e o pai chora, chora no ombro da menina que afinal tudo sabe. chora como nunca chorou, chora por todas as coisas miúdas do mundo, o pranto feliz dos que aprendem a chorar pela morte de passarinhos.

Tolstói na condução

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Enfim, começaria a ler o livro.

Sentou no único lugar vazio do ônibus e começou ali o ritual. Primeiro passava a ponta dos dedos pela capa, sentindo a suavidade que somente aquelas encadernações lisas e duras proporcionavam. Estancou no pequeno declive que havia entre a capa e a lombada. Percorreu a ranhura de alto a baixo com a ponta do indicador. De relance, olhou para os lados para assegurar-se que não estava sendo observado e só então levou o grosso volume em direção às narinas. Inalou fundo a fragrância que vinha do interior. Sem perceber estava de olhos fechados. A frequência cardíaca sensivelmente alterada. Deslizou o tomo em direção à boca, obedecendo ao desejo repentino de mordiscar, de lamber aquela capa. A brusca freada do coletivo o trouxe de volta. A senhora ao seu lado o olhava com um misto de reprovação e interesse. Enfim, começaria a ler o livro.

Todas as famílias felizes são iguais. As infelizes o são cada uma a sua maneira. Adorava ler as primeiras frases dos livros, sobretudo as impactantes como aquela. Percorria estantes inteiras de bibliotecas e livrarias colecionando inícios. Muitos dos livros que leu, o fez motivado pela força da primeira linha. Julgava um bom critério. Não raro o livro desandava passadas algumas páginas, mas a força da frase inaugural compensava. A senhora ao seu lado se levantou pedindo licença. O ônibus já tinha vencido boa parte do caminho e ele nem percebera. Lá fora, as pessoas se acotovelavam no ponto para garantir seu lugar no coletivo. Trago seu amor de volta. Pague após resultado. A frase estampada no poste chamou sua atenção. Aquele podia ser outro bom começo de livro, de um livro que ele ia querer ler. Seguramente um livro sobre pessoas que, a sua maneira, eram infelizes. As operações comerciais envolvendo amores liquidados não lhe parecia fonte de grande felicidade, seja da parte que requeria de volta o amor, seja da parte que estava tendo o amor requerido. O único feliz da história toda parecia ser a pessoa remunerada para fazer a curiosa transação. Um senhor de pé junto ao seu banco, no corredor, lhe acertou com a maleta. Àquela altura, o ônibus já estava bem cheio. Ofereceu-se para carregar o objeto que lhe agredira. O senhor aceitou. Retornaria ao livro.

Todas as famílias felizes são iguais. As infelizes o são cada uma a sua maneira. Não gostava de ser interrompido e tampouco de se perder em digressões. Aquela frase, contudo, solicitava ser mastigada, remoída, ruminada, ainda que a quantidade de páginas que tivesse pela frente não fosse encorajadora de longas divagações. Se eu tiver que voltar, eu paro no meio do caminho e compro uma faca para cortar a garganta dele. Virou-se para trás. A moça franzina diminuiu o tom de voz. Gritava ao celular. Que mania aquelas pessoas tinham de berrar ao celular. Agora ele sabia bem mais daquela mulher do que gostaria, do que seria necessário saber sobre alguém com quem apenas se divide a condução. Uma assassina. Uma infeliz assassina que compra facas para cortar gargantas alheias e que usa sua própria garganta para gritar em conduções lotadas, fazendo saber a todos que não passa de uma assassina infeliz. Qual teria sido o crime do candidato à degola? O hobbie de acumular prelúdios literários talvez só se equiparasse ao de tentar adivinhar biografias de desconhecidos. A moça não queria voltar. Decerto que tomara aquele ônibus buscando evadir-se para sempre. Aquele mundo que deixava não era mais o dela. Uma tolice ter deixado o celular ligado. Agora a solicitavam (a chantageavam?), mas ela não voltaria. Se tivesse que voltar, iria armada. Pararia no meio do caminho e compraria uma faca para cortar a garganta dele. Mas não, não voltaria. Agora ele teria que se virar sem ela. Mas ele nunca aprendera a ser independente. Usaria de todos os recursos para que ela voltasse. Nem que tivesse que recorrer a um desses anúncios de poste. Trago seu amor de volta. Pague após resultado. Mas não. Ela não voltaria.

O senhor de pé ao seu lado pediu a maleta de volta. Iria descer. Santo Deus! Já estavam ali! O ponto final já se aproximava e ele não tinha passado da primeira frase. Retornaria ao livro.

Todas as famílias felizes são iguais. As infelizes o são… O tremor, que parecia vir de dentro de seu próprio corpo, o interrompeu no meio da frase. Também ele deixara o celular ligado. Pensou em ignorá-lo, mas a curiosidade não o permitiu. Podia ser algo importante. Além do mais, não suportaria sentir aquilo vibrando. Fechou o livro e apanhou o aparelho do bolso. Os cabelos brancos e o sorriso cansado do pai iluminavam a tela. Não atenderia. Com um toque, desligou a ligação e, ao fazê-lo, sentiu-se desligando o próprio pai. Mas também… por que sempre o ligava nos momentos mais inoportunos? O tempo, os remédios, a violência, eram sempre os mesmos assuntos, justo com ele que não se interessava nem pelo tempo, nem por remédios, nem por violência. Assim ele só murmurava concordâncias, mas nem lembrava da última vez que tinha prestado atenção ao que o pai falava. Justo com ele que tinha tantas coisas importantes pra fazer. Justo com ele que tinha aquele livro pra ler. Mas e se daquela vez fosse importante? E se ao pai tivesse ocorrido algo de urgente? E se não fosse ele quem lhe buscava, mas alguém que o encontrou na rua desacordado e localizou o contato do único filho na agenda do telefone? O pai sempre vinha com aquele papo de que pressentia a morte breve e que aquela sempre podia ser a última ligação. Claro que podia. Todas podem, ora. Mas teria que retornar. O remorso lhe incomodaria mais do que tempo, remédios e violência. Malditas relações pautadas pelo medo de perder. Malditas eram as famílias felizes, todas elas tão iguais entre si, todas elas tão diferentes da sua. Maldito era aquele livro.

O ônibus parou. Com o livro nas mãos, ele caminhou rápido em direção à porta e saiu. Junto à calçada, homens despejavam entulho em uma caçamba. Ele olhou mais uma vez para aquele livro e o lançou para junto do entulho. Deu às costas e seguiu o seu caminho.

Foi ser infeliz a sua maneira.


Créditos da imagem: Jhonatas Jesus Silva