Baldas

Era uma noite fresca, estava de bobeira, andando sozinho pelo Leblon, fitei a vernissage, garçons flanando, entrei para um canapé acompanhado de um vinho branco de média qualidade. Observava uma tela, quando um cara se aproximou e perguntou o que eu achava, respondi que se parecia com um poema na verdade, uma folha em branco e ideias na cabeça, o sujeito soltou uma gargalhada, só então olhei o figura, com certo espanto porém, sem demonstrar desequilíbrio, estava ao lado do autor de o Poema Sujo, conversamos rapidamente sobre poesia, até alguém se aproximar e ele se perder no turbilhão da galeria.

Outra época em que, pegar um Cometa pela manhã e desembarcar na eterna capital da república, tinha quase o mesmo custo que ficar madrugada adentro bebendo cerveja morna no Bar das Putas discutindo Rimbaud com outros vagabundos, níquel bem gasto onde o que seria comissão pelo atendimento era o mar aprazível do Rio de Janeiro, claro que sem sobra para um hotel barato, na noite tardinha deslizava num amarelinho para a rodoviária e o cochilo nas poltronas vermelhas do velho ônibus.

Não tardou e ralei peito do lugar. Duas quadras depois na mesma calçada, encontrei uma birosca que tinha um chopp no ponto certo, bem mais apropriado para o clima carioca. Fiquei por ali bebericando, anotando coisas para escrever um dia e sabe bem você que nada da pena jamais foi utilizado além da lembrança da vasta cabeleira de Ferreira Gullar. O bom do papo curto com o cidadão maranhense, é que ele foi o único até hoje que não me disse que poesia não dá dinheiro afinal, quem lê poesia não é mesmo? Por isso, os dois livros de versos que lancei foram em formato artesanal, baixo custo, retorno suficiente para cobrir as bebedeiras em seus respectivos lançamentos.

Um tanto impregnada do etílico esta página, algo que aprecio acompanhado de um bom tabaco, quando destilo não deixo cair respingo na folha que transpiro ou no chão, tão pouco ofereço ao santo afinal, como escreveu o bardo Juraci, nenhum deles merecem tal sacrifício, enfim, contudo, bora ladeira abaixo, faz sol no Rio nesse caso o Pequeno, para erguer um grande EVOÉ ao querido Renan Reis, autor do livro título desse papo nosso, o amigo poeta colocou no mundo uma lindeza de prosa poética capaz de deixar a gente que se julga escrevinhador com o rabo entre as pernas e para não ser chato mesmo sendo, se achasse tudo  lindo maravilhoso com certeza o meu camarada acharia estranho, não concordo com o título mas, sei que se não tivesse nada de Drummond não seria Renan Reis.

PS: Esse texto nada tem de baldas também.

Nem havia

CARPE

 

Nem havia o cão Jhon Fante companheiro de estante e caminhada, nem santo homem que me apunhalou pelas costas, tão pouco a mulher que achava meu pinto torto, motivo por não engravidar, levando com que se enamorasse por um albino tocador de cuíca, samba bem leite azedo para dizer o mínimo, também não rolava a tontura após a delicia de saltar fumaça bom charuto Cohiba, nem a reclamação de Péricles por meu futebol ser o reflexo da miopia de meu olhar, não havia a ansiedade de geraldino depois, sensação de gol anulado pelo tento de barriga do time adversário, ano centenário do orgulho maior Flamengo, não havia Cartola, Nelson Cavaquinho, genuína bateria Mangueira estação derradeira, ficção era o consolo da balança em tarde de sol, era bom o cantinho ventre de mãe mas, nem isso havia, por certo, nem porra no saco de meu pai tinha naquela trepada de madrugada para gerar o não haver.

Imperador da Praia Grande

As meninas degustavam espeto gaúcho, a fome de ondas quebradas, quebrantos lavados com sal. Na esquina a fumaça subia solta pela pipa, pito bom refrescado por uma gelada. Brotou feito flor baldia nome de imperador, para Julio o que é de César, cidadão praieiro Julio César. De onde venho, sabe você que corre por essas linhas, que fumo tabaco por prazer pelas vias e também para tragar essências na cara de gente chata. O figura chegou carregando elogio, de pronto pensei que fosse pelo Ganesha estampado na bata que porta equilíbrio, ledo engano, era pelo cachimbo reluzente pelo brilho da lua dando tom ameno para a noite Iemanjá. Tempos atrás pertenceu ao Clube do Cachimbo, a brisa que bafejava portava a nostalgia de ter (re)encontrado um caro amigo, assim é, assim somos, o novo no velho e o inverso. Arte milenar tragar o fumo, reverência, referência de paz, antes de experimentar pela primeira vez o dele, temperava o fumo entre mel e uísque, algum tempo depois de todos os elementos estarem bem curtidos, podia pitar numa boa. Saravá Vinicius de Moraes, amizade não brota em leiteria. Deslizamos entre conversas, lúpulos, maltes, as meninas com estômago em compasso entraram em nossa conversa, algumas risadas cessaram quando contou o motivo de der perdido dois dedos de uma das mãos, uma queda de motocicleta, ficou mal, quase morreu, ateu como eu botou fé em deus por ter levado o mindinho e o anelar em troca pela sobrevivência. Por detalhes do percurso que não correspondem a fatos bancários, abdicou do puro tabaco por um lance de filtro, tragada rápida meio passo de caminhada, acendeu antes de partir unzinho na brasa de meu cachimbo, depois do abraço entrou pela direita na Rua Argentina, lá se foi meu hermano levado pelo destino e que hoje é vento na cuca sem capacete descendo a serra numa Harley Davidson.

Crianças

Encontram-se no parque. Cada um com seu rebento. A mulher com o filho dela. O homem com a filha dele. Nunca se viram. São as férias de julho e o parque está cheio. Faz sol. As crianças correm pro tanque de areia. Homem e mulher sentam-se no mesmo banco. Conversam.

– Que bom que hoje saiu sol, não?

– Nem me fale… não aguentava mais aquele frio.

(…)

– Eles nunca se viram e parece que já são amigos desde sempre.

– Como?

– As crianças… parecem que são velhos amigos, mas acabaram de se conhecer.

– Ah, sim, eu vi. Uma graça, né? Meu filho mal viu sua menina e foi logo a convidando pra brincar.

– É… as crianças são mesmo demais! Minha filha estava lá entretida fazendo outra coisa e mesmo assim aceitou brincar com seu filho.

– Ah, esse menino é muito sociável. É a capoeira, né, a capoeira estimula bem a socialização. Ele não perde uma aula, toda quinta de manhã, desde que aprendeu a andar. Era uma graça, bebezinho, o berimbau dava dois dele.

– Pois é, nem me fale. Esporte é tudo pra uma criança! Vê só minha menina, com essa gentileza toda, essa paciência, foi tudo o kung fu. Foi mesmo um achado. O kung fu estimula muito isso. Por isso que toda quarta e sábado, ela sai da aula de circo e vai diretinho pro kung fu!

– Circo?

– Sim, malabarismo. É ótimo pra coordenação, pra destreza, pro equilíbrio. E é bom estimular isso desde cedo, né?

– Ah, sim, mas quanto a isso eu não posso me queixar do karatê. Concentração, equilíbrio, disciplina, respeito aos mais velhos, meu menino desenvolveu tudo isso graças ao karatê. Terças e sextas desde os dois anos! Veja que deu resultado, né? Olha a perfeição dos castelinhos de areia dele, olha com que destreza que ele fez aquela pontezinha ali.

– Sim, sim… mas veja só como ela organizou as pazinhas, da maior para a menor, alinhadinhas ao lado dos baldes… aquilo tudo é kumon, minha amiga, é o kumon dando resultado ao vivo e em cores. Tardes de quinta e manhãs de domingo. Com ela não tem pra ninguém na matemática, no raciocínio lógico, além da concentração, destreza, capacidade para lidar com desafios, tudo isso vem junto, né?

– Ah, mas o meu muleque nem precisou de kumon. O colégio dele é montessoriano, sabe.  Daí é outra coisa. Com dois anos ele já sabia amarrar o sapato com autonomia, se servir sozinho e comer de garfo e faca com desembaraço.

– Está certo, mas você já leu Piajet? O construtivismo é que é a tendência, viu? Antes dos quatro minha menina já sabia as quatro operações matemáticas e conversava em inglês com qualquer um!

– E mandarim ela sabe? Porque saber inglês é meio século vinte, né? O importante agora é dominar o mandarim. A China vai mandar no mundo, meu caro! Potência! Olha só como tem chinês por aí, de cada quatro pessoas no mundo, uma é chinesa. Meu menino aprendeu o mandarim junto com o português! Pronuncia bem cada fonema, fala bem até os mais nasalares, parece um nativo! Até que lhe cairiam bem uns olhinhos puxados com essa pele bronzeada linda que ele tem. Também, né, treinando surf do jeito que ele treina.

– Mas estamos há mais de cem quilômetros do mar!

– Sim, é verdade, mas para que servem os finais de semana, não é mesmo? Meu marido desce com ele pro litoral todo sábado de manhã e só voltam domingo a noite. Este contato com a água é muito importante!

– Ah, sim, com certeza! A natação é um esporte completo! Minha garota aprendeu a nadar antes dos seis meses. Foi ótimo pra ginástica rítmica e pros saltos ornamentais que ela pratica hoje. Medalha de ouro dois anos seguidos nas competições estaduais. Ano que vem ela vai disputar o nacional, daí sim eu quero ver!  Você nem imagina o orgulho! E além do mais, os jogos olímpicos estão logo aí, né?

– Ah, sim, sim, os jogos olímpicos, claro… estão logo aí… meu menino tem grandes chances na esgrima e até mesmo no arco e flecha. Ele treina os dois desde que saiu das fraldas aos oito meses. São esportes maravilhosos para a formação do caráter e para o desenvolvimento da confiança. Não menos importantes que o halterofilismo que ele pratica desde os três, às segundas, logo depois da aula de yoga, que ele faz junto com o coleguinha que ele conheceu no curso de gastronomia. Tudo ótimo pro conhecimento do corpo e pro controle emocional.

– Ele usou fraldas até os oito meses? Minha menina jamais usou fraldas! É muito anti-higiênico. Existem práticas muito mais assépticas e modernas que essa. Não há nada mais moderno na Alemanha e nos Estados Unidos. Você não assiste o Fantástico? É preciso apenas estar atento aos sinais! Ser um bom observador! Não foi você mesmo quem me falou sobre conhecer o próprio corpo?

– Bom, se é uma técnica alemã meu filho deve conhecer, já que fez intercâmbio na Alemanha dos quatro aos cinco anos. Fez um curso de filosofia e retórica para crianças numa escola cristã, porque além do corpo, também é preciso desenvolver o espírito, não é mesmo?

– Minha filha também fez intercâmbio. Ela trabalhou em uma ONG canadense que combate a fome na África!

– Ah, é? E meu filho já foi embaixador da ONU pelos direitos humanos!

– E a minha já ganhou o Nobel da Paz. Duas vezes!

(…)

A tarde avança. Homem e mulher seguem conversando. Ela sobre o filho dela. Ele sobra a filha dele. Conversam muito e com tanta obstinação que por um momento deixam de prestar atenção nas crianças suadas e remelentas, seus filhos, que brincam no tanque de areia do parque. Se a conversa não estivesse assim tão interessante, eles talvez reparassem no momento em que a menina, seis anos, indigna-se com o menino, seis anos, que lhe atirou de caso pensado areia na cara, e lhe responde com um sonoro safanão no meio da fuça. Talvez também reparassem no momento em que o menino, agudamente magoado, lhe devolve o safanão com mais força do que o recebeu e lhe dirige palavrões dos mais cabeludos que aprendeu numa letra de funk. Os dois engalfinham-se na areia manchada de sangue. A tarde cai no parque. É férias. Homem e mulher seguem sentados no banco. Conversam.

O encontro

– Tudo bem?

Lembrou-se que esta noite dormira mal por causa dos pernilongos e também por causa do calor abafado que fazia na sala. Lembrou-se que dormira na sala porque sua presença no quarto, ao lado da mulher, já não era mais bem vinda, sobretudo depois do que acontecera ontem. Lembrou-se do café fraco que tomou no bar da esquina e da sensação estranha, misto de descrença e impotência, quando viu que o balconista levava o café para ser requentado no microondas. Lembrou-se do sabor de petróleo que tinham os cafés, sobretudo os fracos, quando requentados no microondas. Lembrou-se do Largo da Pólvora lotado e de como o cobrador não lhe respondera ao seu “bom dia”. Lembrou-se da angústia que sentiu ao perceber que o ônibus chegava ao seu destino e de que tinha que trabalhar mais uma vez naquele escritório estéril e olhar mais uma vez para o bigode ensebado e tingido de seu chefe. Lembrou-se de que tivera que almoçar sozinho, porque não tinha estômago forte o bastante para olhar a nenhum de seus colegas enquanto comia. Lembrou-se do gosto de ranço da carne e na quantidade absurda de sal que por descuido caíra em sua salada. Lembrou-se que se importara com isso por causa de sua hipertensão galopante, que havia lhe obrigado a tomar aqueles remédios caros, depois dos últimos exames. Lembrou-se de que ainda era segunda-feira. Lembrou-se da necessidade que tinha de ir aquele bar, depois do expediente, e do enfado, provavelmente mal disfarçado, que sentiu ao encontrar aquela figura conhecida e que agora lhe perguntava se estava bem. Lembrou-se do inútil que seria ser sincero.

– Tudo. Tudo ótimo e você?

Bárbara

A chuva de ontem foi lágrima pela partida de Bárbara. Pelas asas da Paner lá se foi ela e sabe que não é fácil olhar o vazio que ficou. Passando pela Aclimação hoje fitei a janela de seu apê, aberta estava, exalava dali um incenso sorriso. Assoviei um Jobim sabe aquela de que a gente mal nasce e começa a morrer? Ano passado atravessei noites na companhia de uma turma bem poesia, nessa turma estava a menina que nesse instante já deve ter desembarcado na América. A vida tem esse tom de acorde novo, nossos sonhos de achar felicidade é o combustível perene, gosto dessa palavra PERENE, me lembro sempre da gargalhada de Irene, as riminhas funestas que ganham o papel enquanto a ideia toda não desenrola. Início da manhã caminho tranquilo rumo ao trabalho, para apagar o gosto do café, botei um charuto na boca, apaguei a sensação de saudade quando a fumaça fez tossir a mocinha que passava, o cruz credo que ela soltou fez me rir, a garoa tocando meus cabelos molhados de água e sono, já reparou como as pessoas se escondem de qualquer gotinha que pipoca do céu? Povo feito de açúcar, quase todos sem nenhum humor. A pequena, sombrinha rosa, tanto para ver viver, será que conhece a canção sei lá do Tom na voz de Miucha? Ninguém nunca sabe, que males se apronta, fazendo de conta, fingindo esquecer. A ponta acesa, os pés quase que bailando no princípio pela calçada, fim de ano, quase natal, as luzes das esperanças alheias não brilham durante o dia, tudo tão bonitinho, essa coisa do nascimento do menino deus, não é por nada não mas, tem hipocrisia demais nesse exercício de enfeitar casas com quinquilharias compradas na 25 produto de mão de obra chinesa. Desisti de dropar na onda do trabalho quando encontrei Madureira pedalando ouvindo João Gilberto, deslizamos numa padoca bem curva de rio, estabelecimento onde tenho certo crédito, onze no ponteiro, uma gelada e evoé Bárbara.

BARBARA

O vão entre o trem e a plataforma

vaoEram só ele e ela no último dos trens noturnos com destino à Luz. Subiram no Butantã. Ele e ela no mesmo vagão. Ambos só desceriam no final. Ele perguntaria as horas, ela responderia. Ela perguntaria o nome, ele responderia. Para emendar, ele perguntaria o dela. Falariam da lentidão do veículo, do frio do ar condicionado, da sorte que tinham por terem conseguido pegar o último trem. Antes de chegar na Paulista, já saberiam onde um e outro moravam e o que gostavam de fazer nas tardes de domingo. Quando estivessem na República e o auto-falante anunciasse que a próxima era a última estação e que por gentileza desembarcassem todos, já teriam trocado os telefones e combinado algo para o fim de semana seguinte. Na Luz, se despediriam com um beijo no rosto e com a promessa de mais conversas como aquela. Próximo domingo, ela diria. Próximo domingo, ele diria. Formariam um belo casal, desses que a gente não imagina separado. Teriam filhos. Dois. Um casal de gêmeos lindos. Teriam feito tudo e talvez até um pouco mais, mas antes mesmo de Pinheiros, ela tombou a cabeça sobre o vidro e se perdeu distraída lendo as placas de publicidade. Teriam feito tudo e talvez até um pouco mais, mas assim que sentou no banco e ajeitou as pernas, ele levou mecanicamente a mão ao bolso e pegou seu telefone. Foi jogando cartas no aparelho durante todo o trajeto para não sentir o tempo passar. Ao chegar na Luz, cada um saiu por uma porta. Ela virou para a direita. Ele virou para a esquerda. Nunca se lembrarão de nada disso.

no bole bole

De deus esse líquido que escorre pelos lábios, era gelado, escorre quente, ouriça serpente, que levanta cabeça, quer romper o ar, quando o olhar fita dedinho que impede que escorra pelo corpo baba sabor. Língua no bore bore, teleco teco, salve Baco! Transcendência a íris que baila na maré ébria desse dia pulcro pagão. Não é feriado, tem Papa peludo quase pelado,  alpercata de couro bom,  luxo só sem ser mulata. Diacho pobre diabo, fiquei assim como estou, sem dar primeiro passo, desgraçado fantasiado de homem santo, lambe suor da moça, dedos, vai chupar até o caroço, sou ruim não mas, espero que tenha gosto de fel.

A prodigiosa sorte de Fortunato Dias de Ventura

trevoDesde muito pequeno, Fortunato Dias de Ventura descobriu que tinha uma relação bastante estreita com a sorte. Foi logo em seu primeiro verão, na pequena cidade de Quimera, quando sua mãe lhe deixara desfrutar de seu primeiro picolé, que tal intimidade com as coisas do destino se revelou pela primeira vez. O menino refestelava-se com aquele bloco róseo de gelo, corante e açúcar (sobretudo açúcar, muito açúcar) quando sua mãe, a atordoada Sra. Lenora Dias, pôde ler no palito de madeira que o rebento tinha direito a outro sorvete igual aquele, numa daquelas promoções que existem desde sempre, que todo mundo conhece, mas que de fato, de verdade mesmo, ninguém nunca ganhou nada. A mãe, que aos trinta e tantos anos já se considerava pessoa bastante azarada, sobretudo quando se lembrava de suas escolhas matrimoniais (o que não vem ao caso neste relato) nunca tinha ganho nada nesta vida, além de maridos infames e contas para pagar. Enquanto pegava o menino lambuzado pelo braço e caminhava de volta à sorveteria para retirar o grande prêmio, lembrou-se da vez, muito parecida com aquela, em que era menina, cercada de outras tantas meninas, suas amigas, e dera um pulo de alegria ao perceber que tinha uma mensagem escrita no palito de sorvete. As meninas logo se acercaram e começaram a rir às gargalhadas, ao lerem que aquilo não dava direito a nada, a não ser a alguma sensação de consciência tranquila, já que o que estava escrito no pequeno palito lambuzado não era nada mais benfazejo do que um “Este palito foi feito com madeira de reflorestamento. Preserve a natureza: não o jogue em vias públicas”. A pobre Lenora, depois de meses sem ter coragem de botar a cara na rua, nunca mais dera bola para promoções e palitos. Até o dia em que nasceu o pequeno Fortunato Dias de Ventura.

O mais curioso, e o que talvez aqui ninguém acredite, é que o sorvete que Fortunato Dias de Ventura ganhou naquela manhã, também havia sido moldado em torno de um palito premiado, para grande azar do sorveteiro, que viu seu faturamento sensivelmente atingido por aquele acontecimento apoteótico. O fato é que a partir daquele dia todos os sorvetes que o menino ganhava vinham afortunadamente com o palito premiado (e olha que Fortunato gostava muito de sorvetes!). O dono da sorveteria, muito desconfiado, sensivelmente temeroso de sua falência iminente, teve como ideia abrir uma ou outra embalagem de sorvete, de modo aleatório, para ver se aquilo era mesmo sorte ou erro do fabricante, algum lote que viera desgraçadamente mais sortudo que os outros, quem sabe. Logo se viu, no entanto, que esta hipótese poderia ser facilmente descartada. O sorveteiro, a  esposa do sorveteiro e os netos do sorveteiro entupiram-se por dias e mais dias de sorvetes e de decepções, e nada mais liam ao final de cada uma daquelas guloseimas geladas, do que a decepcionante inscrição “tente outra vez” nos palitos de madeira. A tristeza estava estampada em seus rostos melados, sobretudo quando entre um fracasso e outro, viam entrar pela sorveteria aquela figura cada vez mais rechonchuda e rosada que apontava do colo da mãe para qualquer um dos picolés da geladeira que, invariavelmente, vinham premiados.

O sorveteiro, resignado, resolveu tirar proveito daquilo e apostou numa estratégia de marketing, palavra até então desconhecida entre os habitantes de Quimera. Botou na fachada da sorveteria, em letras vermelhas e garrafais, uma faixa com a seguinte inscrição “Sorvete premiado. O prêmio já saiu aqui 47 vezes!”. No começo até que deu certo. Os moradores de Quimera, sensivelmente atraídos por aquele dado expressivo e profundamente incomodados pelo forte calor que fazia naquele triste e tenebroso verão, fizeram filas na porta da sorveteria para adquirirem também o seu tão sonhado palito premiado. Só que todos os outros habitantes da cidade eram pessoas de sorte apenas mediana e, portanto, jamais conseguiam o direito a outro sorvete. Alguns saiam cabisbaixos, lamentando a pouca sorte, outros saiam furiosos, muito irritados, xingando o sorveteiro e toda sua família de embusteiros de uma figa, que não deviam brincar assim com a esperança das crianças. E foi assim que começou a guerra fria, a verdadeira, assim chamada pelo gelo com que os moradores de Quimera passaram a tratar toda a família do vendedor de gelados. Uma injustiça, é preciso que se diga, um comportamento realmente deplorável dessa gente, já que como se sabe, o sorveteiro não tinha poderes sobrenaturais que o permitisse conhecer de antemão onde estavam os palitos premiados. O único aspecto sobrenatural dessa história toda era realmente a prodigiosa sorte de Fortunato Dias de Ventura.

Chegou a hora, como haveria de chegar, que o menino cansou de tomar tanto sorvete e passou a recusar até mesmo os sabores mais extravagantes e açucarados, aqueles que sempre o atraiam. Seus pais resolveram então guardar como um troféu o último dos palitos premiados para se lembrarem no futuro daquela fase áurea do garoto. A sorveteria, no entanto, não resistiu ao verdadeiro boicote exercido por seus antigos clientes e fechou suas portas. O sorveteiro e sua família fizeram as malas e se mudaram para a Sibéria, de onde eram seus parentes mais próximos, e nunca mais voltaram para Quimera, de modo que nunca souberam que seu antigo estabelecimento havia se transformado numa espelunqueira lanchonete, dessas que mais parecem um botequim, com banquinhos no balcão e vitrine de coxinhas, torresmos e ovos azulados na entrada. O que distinguia o recente estabelecimento dos demais de sua espécie era a presença, um tanto sorrateira e disfarçada, nos fundilhos mesmo do recinto, já próximo aos banheiros, de uma bancada para o jogo do bicho, a nova tendência no submundo do entretenimento da cidade.

A viúva Noêmia nunca fora mulher de grandes vícios (e tampouco de grandes virtudes) mas apaixonou-se perdidamente pelo bicheiro, o atarracado Sr. Osório, desde a primeira vez que, saindo distraída do banheiro do bar, dera de cara com aquele sujeito que acabava de atender um cliente (um senhor que arriscou uma bolada no burro). Dona Noêmia, que era muito inteligente, decidiu apostar naquela relação e passou a frequentar o bar regularmente, nunca se esquecendo de fazer sua fezinha, nunca sem ver Osório. Isso seria apenas mais uma história, como tantas outras histórias, de alguém apaixonado que se vê cometendo insanidades nunca antes imaginadas, apenas pelo simples deleite de passar um tempo a mais ao lado da pessoa amada, não fosse a viúva Noêmia avó de um menino tão sortudo, o ditoso Fortunato Dias de Ventura, protagonista desta história.

Ciente das alvissareiras conquistas que o neto já realizara no mercado das guloseimas geladas, a viúva Noêmia resolveu contar com o garoto para suas ótimas intenções no mercado matrimonial. Todo sábado levava ao neto a cartela colorida do jogo de bicho e pedia ao menino rechonchudo que apontasse com os dedos para a imagem do animal que mais lhe apetecesse no momento, que fizesse uma escolha aleatória como outrora já fizera com os picolés. Não há quem não conheça a máxima que diz que um raio não cai mais de uma vez no mesmo lugar, mas como todos aqui já sabemos, essas coisas só funcionam para pessoas de fortúnio medíocre, como a grande maioria de nós. Para pessoas magistrais como Fortunato Dias de Ventura, o raio cai exatamente no local em que ele quiser e no momento em que ele quiser. Assim, como é fácil de se supor, a viúva Noêmia passou a ganhar no bicho absolutamente todos os sábados. E só não jogava todos os dias porque tinha pudores, tinha receio de que a boca pequena melasse o clandestino negócio de Osório, como já tinham feito antes com os açucarados sorvetes.

De tanto ganhar no bicho, a viúva Noêmia comprou uma modesta fazenda e chamou Osório para morar com ela. O atarracado Osório gostava muito de sua vida clandestina, sempre conhecendo gente nova, conversando com os apostadores de saída de banheiro, aquela gente aliviada que nunca fazia sua vida cair na rotina. Entretanto, a possibilidade de se unir a uma pessoa tão bem aventurada, tão primorosamente afortunada, fez com que Osório pesasse bem e decidisse pela vida no campo, longe dos bichos, ou melhor, longe do jogo do bicho e perto dos bichos de carne, osso e úberes e também perto da sorte da viúva Noêmia. Mas como a sorte de Noêmia não era de Noêmia, mas sim de seu neto, e como o seu neto não era algo que se pudesse carregar por aí, o interesseiro Osório acabou se desinteressando por Noêmia, que nunca mais ganhou nada fácil nessa vida, e viu o seu negócio agrário se desmoronando tão fácil quanto veio. Numa tarde de sábado, quando tudo parecia que não podia piorar, Osório caiu do burro. Era um burrinho pedrês, último bicho que sobrara na fazenda, já velho, sem dentes e que não aguentou o peso do atarracado Osório e o lançou longe. Osório morreu na hora e a viúva Noêmia ficou viúva de novo.

Enquanto isso, Fortunato Dias de Ventura crescia. Sua avó Noêmia foi morar com ele e com seus pais. A velhinha já não saia de casa, temerosa de se apaixonar de novo e de contrair uma nova viúves. Estava, digamos, um pouco confusa das ideias e passava o dia repetindo sequências de números e bichos e anotando obscuros hieróglifos em seu bloquinho cor de abóbora. Fortunato Dias de Ventura, agora um rapaz de pelos emergentes, olhava tudo aquilo muito assustado, mas buscava não contrariá-la. Deixava a velha senhora em paz – avestruz, águia, burro, borboleta – e saia todo dia para cuidar de sua própria sorte, sempre ao lado do pai, o agitado Sr. Eduardo de Ventura, porque a mãe, muito religiosa, não gostava de se envolver naqueles assuntos escusos, que já haviam levado à falência uma família de pessoas tão honestas, como era a do sorveteiro, além de ter deixado louca sua sogra, antes pessoa de ideias tão razoáveis, salvo pelo fato não desprezível de ter educado seu ignaro marido.

Se antes o menino Fortunato Dias de Ventura apenas se refestelava com inocentes picolés de palitos premiados ou gostava de apontar seu dedo roliço e rosado para uma cartela colorida cheia de animais – como teria gostado de fazer qualquer criança de dedos menos roliços e de sorte menos promissora – agora a coisa estava um pouco mais séria, um tanto mais profissional. O Sr. Eduardo de Ventura havia se tornado uma espécie de empresário, manipulando a sorte do filho em casas de apostas, em corridas de cavalos e até mesmo, por que não, no bingo da paróquia de nossa senhora de Monte Serrat, frequentado desde sempre pela Sra. Lenora (que se enchia de vergonha toda vez que via o marido, aquele desqualificado, chegando com o menino naquelas sagradas tertúlias dominicais). A estratégia do pai era bastante clara e sagaz. Por mais sorte que Fortunato tivesse, por mais certo que fosse que ele poderia ganhar o que quisesse e quantas vezes quisesse, isso não poderia acontecer sempre. A estupenda sorte chamaria muita atenção e poderia pôr a perder aquele negócio tão auspicioso. Então o segredo era manipular os palpites do rapaz e perder de vez em quando, às vezes até mesmo um dia inteiro, tudo para não causar suspeitas. Nesses dias inglórios, se Fortunato escolhia uma cartela, o pai logo tratava de substituí-la. Se o rapaz apostava num puro sangue lusitano, o pai declarava apoio a um quarto de milha qualquer. O segredo era sempre fazer apostas miúdas nestes casos de derrota certa e deixar os palpites polpudos para quando Fortunato tivesse a liberdade de escolha. Nessas horas eles quebravam a banca, como dizem nesses meios, e imediatamente voltavam pra casa, para grande desgosto de Fortunato, que não gostava de se ver tão castrado em suas venturas com o destino.

Nos primeiros meses do negócio a economia doméstica foi sensivelmente progredindo. A casa ganhou uma reforma de arquitetura primorosa, com três andares e um mirante com vista para as montanhas mais distantes. Até mesmo a viúva Noêmia saiu beneficiada dessa história toda. Construíram para ela um altar em um quartinho nos fundos da casa, onde ela adorava imagens em tamanho real dos vinte e cinco animais do jogo de bicho, inclusive o elefante que sozinho já ocupava quase a metade do ambiente. A velha senhora, cada vez mais enrugada e com olhar progressivamente mais sombrio, caminhava em círculos pelo recinto, carregando um castiçal de velas coloridas com nauseante odor de flores mortas. Repetia palavras impronunciáveis e quase não se alimentava mais. O prato de comida que a Sra. Lenora deixava todo dia na porta de seu quartinho, quase sempre voltava intocado. A mãe de Fortunato, aliás, a despeito do vertiginoso progresso econômico pelo qual passava sua família, não conseguia concordar com a origem sibilina daquela fortuna toda e se mantinha ainda mais afastada daquele ser abjeto que era seu marido, conforme ela fazia questão de lembrar. Aproveitando-se das grandes proporções que havia atingido sua residência e das grandes distâncias de corpos que isso proporcionava, certa vez mandou colocar os pertences de seu abominável cônjuge para fora do quarto e mandou a criatura se instalar em um dos novos dormitórios do terceiro andar, bem longe dela, que desde sempre havia se recusado a sair do térreo. Nem acreditava que depois de tantos anos conseguiria passar uma noite sem ter que ouvir aqueles barulhos – e os consequentes odores – que vinham dos mais recônditos buracos do marido.

Fortunato Dias de Ventura, por sua vez, a despeito de sua sorte tão prodigiosa, andava pela casa taciturno e cabisbaixo, tropeçando em trevos de quatro folhas que somente ele conseguia enxergar no jardim. Não tinha amigos e não ia para escola, já que o pai não queria que suas energias fossem desperdiçadas em expressões de álgebra e no estudo de línguas pouco úteis para os negócios do destino. O Sr. Eduardo de Ventura passava o dia longe do casarão, envolto em atividades nunca bem esclarecidas, sabido que sempre foi para todos que ele não trabalhava desde antes do nascimento do menino. A economia doméstica sempre fora capitaneada pela mãe, que mesmo agora com o advento dos prodigiosos desígnios do filho, continuava a produzir mandalas e filtros dos sonhos que vendia nas feiras de artesanato da cidade. O casarão passou tempos assim, da mais modorrenta rotina, com cada um de seus ocupantes suficientemente distantes uns dos outros, a ponto de mal se cumprimentarem quando, por ventura ou descuido, calhavam de se trombar em algum corredor. Com a vizinhança, tampouco, exerciam qualquer tipo de relacionamento desde os tempos já saudosos dos palitos de sorvete. A casa era uma ilha na cidade de Quimera e passaria despercebida pelos vizinhos, não fosse o quadradinho sempre iluminado do quarto da mãe no térreo, os estranhos ruídos que vinham do quartinho da viúva Noêmia nos fundos e as saídas furtivas do menino com o pai, sempre que este aparecia, vindo sabe-se lá de onde, mal a noite começava a se pronunciar, para buscar o menino e levá-lo cidade afora a fim de explorar sua estrondosa sorte.

Certa vez, no entanto, o Sr. Eduardo de Ventura não apareceu para buscá-lo. A lua aparecia no céu de Quimera e Fortunato já se mortificava ante a perspectiva de mais uma noite perdida em casas de apostas e mesas de pôquer. Chegou até mesmo a dormir no banco de cimento diante do portão do casarão, onde sempre esperava seu pai. Mas naquela noite ele não apareceu. E tampouco apareceu na noite seguinte e sequer mandou algum recado para explicar suas ausências nas noites e noites seguintes. Fortunato, sempre obediente, não deixou de esperá-lo, noite após noite, diante do casarão. Sua mãe, compadecida e sempre em silêncio, aparecia de tempos em tempos com um prato de comida, um cobertor para as noites frias e depois de algumas semanas, quando percebera que o filho passara a dormir a madrugada toda ao relento, trouxera-lhe um de seus filtros dos sonhos, para lhe proteger a noite.

Passados três ou quatro meses de espera ininterrupta, certa noite o menino foi novamente surpreendido pela figura da mãe, que de camisola branca e com uma vela na mão, apareceu diante dele, que já dormitava no banco de pedra, ao relento, e pronunciou solene “Já não se ouve mais nada. Ela também se foi”. Fortunato olhou para mãe confuso, sem saber se estava acordado ou ainda dormindo, mas logo deu-se conta de que tudo estava num absoluto silêncio, um silêncio inaudito, como há anos não se fazia. Já não se escutava mais os incompreensíveis murmúrios da viúva Noêmia. No quartinho dos fundos, apenas as chamas de velas pela metade e o olhar penetrante de vinte e cinco animais que agora poderiam dormir tranquilos.

Muito se especulou sobre o sumiço repentino da viúva Noêmia. A reinauguração do silêncio não poderia passar incólume na pequena Quimera, já que os murmurosos lamentos da velha senhora podiam ser escutados até mesmo das cidades vizinhas, assim como se podia sentir de longe o cheiro nauseabundo de suas velas coloridas. Alguns afirmavam, e juravam certeza, de que tinham avistado a viúva Noêmia se esvanecendo como fumaça, pela chaminé nos fundos do casarão, até se perder entre as nuvens mais distantes do céu noturno. Outros juravam que tinham visto Noêmia em uma praia do Marrocos, comprando tapetes e outras quinquilharias junto a um bem apessoado senhor, que muito parecia ser o pai de Fortunato Dias de Ventura. Nada disso, porém, conseguiu alterar a rotina de Fortunato, que noite após noite, sempre no mesmo horário, se punha diligente diante do portão de ferro para esperar atento o seu tão demoroso pai.

O tempo fizera do casarão um prédio decrépito e cinzento. A despeito da imensidão da casa e do pó que se acumulava nos móveis, a ponto de não ser mais possível vê-los, a mãe se recusara a ceder às pressões da especulação imobiliária. Em todos aqueles anos, após o sumiço do marido e da viúva Noêmia, sempre a atormentavam com milionárias propostas de compra do antigo imóvel, para construir em seu lugar um gigantesco shopping center, o arauto da modernidade que teimava  em contaminar a pequena Quimera. Os anos haviam passado e a sorte de Fortunato Dias de Ventura há tempos que não dava mostra de sua portentosa presença.  Há anos que ele não entrava em casa, temeroso de que o pai podia aparecer em algum momento de descuido, para se valer uma vez mais de sua prodigiosa sorte. A Sra. Lenora, mesmo com o alivio que sentia pela ausência do marido, passou a dormir ela também todas as noites ao relento, ao lado de Fortunato, o acompanhando naquela espera, revezando com o filho os momentos de sono e vigília. Certa vez, enquanto Fortunato dormia com a cabeça em seu colo, reparou que pela primeira vez na vida se sentia cansada. Olhou para as mãos, com a atenção que nunca costumava olhar, e notou que tinham lhe aparecido manchas marrons e veias calibrosas, que a vida sempre tão agitada e envolta no mais rigoroso trabalho, a tinha impedido de perceber. Ela envelhecera. Olhou também para as mãos do filho, para seus dedos magros de unhas encravadas e lembrou-se do menino de dedos roliços que apontavam certeiros para sorvetes de palitos premiados. Ele também envelhecera. Estavam velhos e sós, em uma cidade que não mais lhes pertencia. Eram somente os dois naquele imenso casarão abandonado, cercado por filtros dos sonhos e lembranças. Foi quando Lenora recordou-se da única boa ideia que seu desprezível marido um dia já teve na vida, que foi a de guardar como lembrança o último dos palitos premiados, na época em que o pequeno Fortunato Dias de Ventura passou a se desinteressar por sorvetes.

Na manhã seguinte, ainda antes do sol aparecer por inteiro no céu de Quimera, Fortunato Dias de Ventura despertou com o toque suave de sua mãe em seus cabelos ralos e grisalhos. Nem bem Fortunato a olhou e já compreendeu tudo. A Sra. Lenora lhe disse de forma terminante, sem margem para contestações “Vamos, venha comigo. Ele já não voltará mais”. Fortunato a olhou sério, tão fundo como jamais a tinha olhado, e nem por um segundo pôs em dúvida as palavras da mãe. Reparou que ela trazia o velho palito premiado nas mãos. A sorte é que essa era uma daquelas promoções que existem desde sempre, que todo mundo conhece e que nunca, absolutamente nunca acabam. E foi por isso, que mesmo quarenta e tantos anos depois, que Fortunato Dias de Ventura pôde entrar novamente em uma sorveteria, ao lado de sua mãe, para trocar um palito premiado por um sorvete. O já alquebrado Sr. Fortunato  hesitou um pouco diante da geladeira de picolés, com sabores ainda mais açucarados que os de sua infância, e resolveu não titubear muito, dando apenas vazão a sua antiga intuição. Escolheu o seu favorito, o de groselha, e saiu com sua velha mãe em direção à praça, onde sentaram no mais absoluto silêncio para tomar sorvete e mais nada, destreinados que estavam da prática do diálogo. Foi então, passadas algumas bocadas, dadas com cautela já que os dentes de Fortunato já não suportavam mais aquelas baixas temperaturas, que ele pôde ver incrédulo, que nenhuma letra havia impressa naquele palito totalmente desprovido de sorte, adornado apenas pelo logotipo da centenária fábrica de sorvetes de Quimera. A mãe não se assombrou. Pelo contrário, sem dizer uma só palavra, mas com o olhar que tudo evidencia, parecia já saber desde sempre que nada daquilo importava. Foi então que Fortunato Dias de Ventura olhou fundo nos olhos da mãe e se lembrou de tudo, de sua presença muda, porém tenaz, absolutamente eterna, até mesmo nos atos menos venturosos de sua vida. Foi quando teve a certeza, como jamais tivera antes, de que tinha realmente uma sorte prodigiosa.

Ela é paulistana

Ela é paulista, she is paulistana, se encantou comigo quando soube que vim do Piauí, tem amigos bacanas, somos um na cama e chorou quando vimos La La Land. Sábado curti uma pizza, diversão comprada com cartão de crédito e tédio a perder de vista. Domingão numa bike, felizes lindinhos, paradas para um beijinho, Av. Paulista, arte livre, povo feliz, orla de comida japonesa, deslizamos num prato, hashi em punhos distantes das árvores para que não mosque escremento de pombos. Tem paladar refinado mas, não achou graça da buchada de bode quando conheceu mainha. Ela é paulistana, carro domingueiro, buzina antes de abrir o sinal. Tem humor típico da capital, ri de quase nada, ama cachorro e nem que saber de criança. Sou bichano dela mas, pediu que tirasse o excesso de pelos, atendo qualquer apelo dela afinal, ela é paulistana.