Miojo

“O meu refrigerador não funciona.
Baby, meu refrigerador não funciona.
Eu tentei tudo, eu tentei de tudo.
Não funciona, não funciona!”

Sentada à mesa da cozinha, Ana balança ao som da música e brinca de criar desenhos com as migalhas do pão de ontem. Uma delas está na cadeira e pinica sua coxa.

Antônio continua a cantar enquanto prepara o miojo:
“Não, não, não!
O meu, o meu, o meu refrigerador não funciona.
Não…”

“Já pensou em comprar um novo, Antônio?”
“O quê?”
“Uma geladeira nova.”
“Com que dinheiro?”
“Já pensou em trabalhar?”
“Me deixa cantar. Meu refrigerador. Baby, baby, aaah…”

Ela ri. E lembra do pai. Ele diria que Antônio corta o nariz pra dar raiva na cara. É duro porque quer, não trabalha porque não quer. Não tinha paciência, o pai. Quer dizer, não tinha paciência com gente. Entendia de máquina. Passava horas desmontando, procurando o defeito, remontando, testando, desmontando de novo. Se estivesse aqui, ele daria um jeito na geladeira. Se não desse, era porque não tinha jeito mesmo.

Antônio divide o miojo em dois pratos e joga queijo ralado por cima.
“Meu refrigerador não funciona,
Meu refrigerador não funci… funci… ona!”

Próxima parada

Talvez a queda tenha começado com os dedos espremidos. A mulher dormia, cabeça pendurada para a frente, franja sobre os olhos, pés inchados tentando escapar pela frente da sandália. Úmida de enxurrada, a tira de couro vermelho como as unhas estrangulava asperezas dos polegares. Uma freada do ônibus e a sandália invadiu o corredor à minha frente feito uma boca repleta de dentes encavalados. Meus pés se encolheram na escuridão das botas. Em vão, buscaram conforto no ambiente infiltrado pelas poças do caminho. Passariam a noite assim.

A sandália voltava para casa. A dona e toda aquela gente desmantelada pelo dia só aumentavam o cansaço pelo meu plantão noturno que nem tinha começado. Maldito gerente. Malditos dedos. Maldito motorista que não sabia frear ou freava forte de propósito pra ferrar quem podia ser ferrado. Maldita chuva que fechava janelas e concentrava bafos e doenças.

Pela janela, a farmácia. Apertei o botão, me esgueirei pelo corredor, pedi licença ao homem do fone de ouvido. Ele não ouviu. Cutuquei, mal olhou, forcei passagem, desci correndo.

Sempre achei que morreria de um jeito estúpido. Escorregão no banho. Carne entalada na garganta. Caí. E antes de apagar tive tempo de pensar na bolsa aberta que ia antes de mim e jorrava lenços sujos, no gerente que me esperava para o plantão, na pena de acabar assim, sozinha no asfalto em uma terça-feira chuvosa.

Quando abri os olhos, o pé boca despudorado sorria para mim.

Antônio 10.820

Da primeira vez, ele contou noventa e oito carros. Esperava um telefonema. Da janela, via e ouvia o viaduto que era seu vizinho. O trânsito estava livre. Um, dois, três, quatro carros. Trinta e um, trinta e dois, trinta e três. Alguns passavam tão rápido e tão próximos que era difícil contar. Duas vezes, ele teve dúvida se tinha perdido algum. Quando chegou ao noventa e seis, o telefone tocou. Contou mais dois e foi atender.

Três dias depois, no começo da noite, voltou à janela. Na praça em frente ao prédio, um bêbado gritava. Ele olhou para baixo, viu o homem deitado no banco, gesticulando, e, à direita, o viaduto. Já tinha jantado um sanduíche de presunto e queijo prato, ido ao banheiro, tomado banho. Podia contar até cem.

Foi até cento e cinquenta no dia seguinte. Duzentos no outro. Duzentos e quinze. Sempre à noite. Precisava de um método. Cada vez, contaria mais dez. E assim foi. Todo dia, latinha de cerveja no parapeito, sentado em uma cadeira ao lado da cama, começava a contagem. Duzentos e trinta. Duzentos e quarenta. Duzentos e cinquenta. Bebia devagar, pra cerveja durar, sem tirar o olho da pista.

Os domingos tinham ainda mais cara de domingo porque o viaduto fechava. No asfalto, famílias passeavam, esportistas corriam, cachorros latiam. Ele trancava a janela, ligava a TV, bebia mais. Saía, às vezes, para a padaria, o parque, o mercado ou a boate. Nunca subia a rampa do viaduto, onde ambulantes aproveitavam o movimento de pedestres para vender pipoca, cerveja e cheetos.

Uma segunda-feira, depois do domingo vazio, foi para a janela ainda antes do trabalho. De manhã, os carros eram diferentes, tinham cor e rostos. No trânsito quase parado, perdeu a conta e recomeçou várias vezes. Saiu tarde, irritado.

Costumava ser o primeiro a chegar e esperava o gerente abrir a loja, mas nesse dia a porta já estava aberta quando virou a esquina vindo da estação de metrô. Não falou com ninguém. Guardou a mochila no depósito, trocou de camisa e se colocou ao lado dos outros dois vendedores que já esperavam clientes.

Fim de mês, vendeu pouco: duas camisas, quatro calças, uma gravata, sete pares de meia em promoção. Comprou um pacote de três cuecas. Pelo menos chegou rápido em casa e pôde se preparar com calma para a janela. Colocou no congelador as cervejas que comprou no boteco ao lado do prédio, esquentou o resto da comida chinesa, comeu duas mexericas, tomou banho.

Tinha tempo até o viaduto fechar, às 9h30 da noite. Pegou quatro latinhas e deixou num isopor no chão, ao lado da cadeira. O trânsito fluía bem, um bafo quente entrava pela janela, o isopor mantinha a cerveja gelada. Lá pelo quatrocentésimo carro, um Gol, Antônio levou a mão direita da coxa até a virilha. Sentiu o pênis e enfiou a mão dentro da bermuda. Se masturbou devagar, concentrado no trânsito. Coordenava o movimento com os números na cabeça. Gozou um pouco antes de encerrar a contagem do dia, setecentos e vinte.

Em uma noite de tráfego intenso, mas fluído, Antônio chegou a dez mil oitocentos e vinte. Nunca superou esse recorde, mas continua tentando. Há três anos, passa pelo menos uma hora na janela do quinto andar do prédio amarelo. Toda noite, conta milhares de carros. Mas quase ninguém vê.

Minhocão
foto: Daniel Castanho / Flickr

Gira-gira-pirilampo

O sangue escorre em grito mudo. Desfeito o coágulo, vaza o medo. Dispo a mancha, esparadrapo o peito, costuro o sorriso. Você corre e me acalma.

Passou. A voz ecoa longe, sem agudos. Eu sei, volta à noite, mas agora estamos sós. Dedos que zunem inventando histórias. Pés que giram, sobem nas pontas, se lançam ao ar. Sons desafinados de vontade.

Logo me torno escuro que não se importa, mas ainda enxergo. Dói não ver seu caminho. O absurdo do dia em que não estremeço com seu choro. O fio desatado, o nó esquecido. Você solto na claridade. Gira-gira-pirilampo-olha-a-luz-vai-se-queimar. E eu sem cabelos para afagar, sem perguntas desnudas. Sem nem chorar distâncias. Se faltam braços, falta tato para sentir ausência. Percebe a atrocidade?

Não quero que perceba. Menino que acredita em estrela ganha um ponto no céu. Para olhar, zelar, bisbilhotar, culpar. Você vai me odiar, um dia.

Estrela não abraça.

A serenidade de folha ao vento não é entrega, é apego. Aparece em mim, mas vem de você. Porque é na falta de continuidade que o egoísmo berra. Nesse mundo que orbita em torno do meu umbigo (o único que existe), você completa o vácuo. Fé pega, ou esfarelamos.

Não se zangue quando ele esvaziar meu armário. O que vivemos, sopro.

As roupas agora já me são estranhas. Nelas vejo olhos, mãos, o problema do que fazer com panos e couros e traças que esfriam de sentido e de mim. Acúmulos de vida e pó, a mesma massa. O chapéu desbeiçado de bons dias, o vestido de flores em tentativa de voltar os anos e agora transparente de descabimento. Sapatos feitos para andar.

De caixas abertas brotam suvenires de viagens apagadas. Pegue o que agradar, recorte e cole, distribua, venda sobras. Lembre-se: capim-cidreira em sachê perfuma e afasta insetos, depois mofa; o pequeno quadro da menina com o coelho passa de geração em geração sem dizer nada; já não se usam marfins, e paquidermes agradecem.

Não estranhe. Acenda a luz. Gire, por favor.

Foto: Bia Lopes em Flickr

(Foto: Bia Lopes em https://flic.kr/p/oMBhc)

Marola

E se as ondas me prendessem? Nunca tão solta, tão mar, e por isso atada. O mundo pronto para me tragar e eu submersa na euforia da madrugada de quarta-feira. Tentada a desfazer malas, cancelar planos, ficar. A seu lado. Do lado do sol. Da praia que desperta grão a grão. Do vestido disforme na areia.

Os primeiros rostos da manhã invadindo nosso território cavado na água salgada. Guto dançando na rebentação. E nós dois suspensos no oceano, cegos de tanto nos ver, despidos de olhos alheios. Repletos dos dias que foram o início do fim.

O corte no joelho já nem parece existir. Enfim, o que resolveu foi banho de mar. O mais longo banho de mar. Não funcionou, a vodca sobre o sangue. O tio disse: joga, é álcool, vai limpar. Mas só ardeu mais. Música alta, saliva, empurrões e o machucado latejando. Estava errado, o tio.

Dobraram o vergalhão sobre a calçada para rasgar quem passasse? Lembrança metálica do Carnaval paulistano.

Seria melhor ter vindo antes. Se bem que tem limite. Satura, tanto sal. Quando chegamos, eu mal via seu rosto. Agora essa luz que reflete nos dentes. Mas ainda a água fresca… E os cílios cobertos de orvalho.

Já muita gente na praia. Carrancas. Nos veem, eu, você e Guto. Que olhem. O melhor fim de festa. De nós dois. Porque vou mesmo. Nem você quer que eu fique; você não sabe, só eu sei. Essa gana é também por termos prazo para acabar. Mantemos o programado.

Guto não está bem.

Só um último mergulho e vamos, pingando pela estrada.

Você levanta o Guto?

Algodão enrosca no corpo molhado, os botões não alcançam as casas. Se eu soubesse que viríamos, tinha trazido toalha. Mas nossos rumos são assim. Acontecem. Aposto que sua mãe nem deu falta do carro. Engraçado foi seu primo acompanhar. Quatro dias com você na multidão dos blocos e, quando escapamos, ele vem junto. Na despedida. O resto da semana não conta, será limbo.

Gotas na pele evaporam rápido, mas a calcinha encharcada vai me incomodar até São Paulo. Se você encostar, desço e jogo no lixo.

O que a gente tem não seca, Vi.

Nos veremos sempre, duas férias por ano, Carnaval, Corpus Christi, Semana Santa. Mentira. Não posso deixar que você me pese. Logo vamos esquecer. Eu pelo menos vou. Ou esqueceria se tivesse tempo. Porque morremos hoje.

Não entendo mais do que seu pânico. Guto nem abre os olhos enquanto pairamos como ondas macias depois da rebentação. Desviamos para a encosta salpicada de marias-sem-vergonha. Tocadas, elas explodem suas bolsinhas intumescidas de sementes e se arremessam para a posteridade.

Sua mãe não vai gostar de ver o banco molhado.

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Foto: Luiz Deliz – https://flic.kr/p/beanUn

Você sabe

Você sabe? Sabe? Enfim.

Eu de repente montinho de areia.

Mas você menor ainda. Mesmo eu sendo essa coisa minúscula que tem medo de você.

Satisfeita?

Sua boca. A expressão amarga, que bajula o chão. A superioridade enviesada da sobrancelha. Que prazer é esse?

Não acabou. Segura o gozo mais um instante. Porque eu também sei.

Descobri que você é menor do que essa caixa. Mais quadrada, mais polida. Seu segredo é só o vazio. O espaço dentro da caixa. Espaço pequeno, mas suficiente para o seu pouco ressecado. Folgado, aliás. Fecha a tampa, rápido, para nada escapar.

Nem vem se fazer de ostra. Eu tanto tempo querendo ser faca, mas cega, sem fio. Lembra? Você, útero, e eu, aborto. Você, silêncio, e eu, verborragia. Mas você só se fez concha porque me sabia sem corte. Fingiu ocultar pulso sob a craca que rasga mãos. A promessa: osso por fora e macia por dentro — mas na verdade osso e osso.

Agora reclama do disfarce, mas como eu entraria de cara limpa?

Olha pra mim. Sem tremer. Sem tremer porque eu sei que o tremor é tentativa de esconder que você não tem o que esconder. Diferente desse espasmo que repuxa sua bochecha esquerda a cada dois segundos. Isso, sim, é real. Seu. Percebe o quanto é ridículo? Pelo menos é seu.

Cuidado que se bate um vento você fica torta pra sempre.

Mas, sabe, eu ia querer te lamber mesmo torta. Arranhar de novo a língua até tirar todo o sal. Depois morder. Mastigar os olhos que veem que os meus não veem. Comer os ouvidos que me escutam dizer que sei que não há quando na verdade não sei ver o que há. Triturar buscas. Se não existe mistério, conheço o mundo. Nosso mundo sem sombra nem luz.

Quem é mais cruel: você, com seu eu-sei de riso oco, ou eu, que não vejo?

Se a gente fechasse os olhos, se encontraria?

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Um ponto escuro

Antônio mastiga mexerica devagar. O sumo é azedo como o fim de tarde nublado que amargou meses da sua infância. Estava no sítio, tinha jogado metade da laranja no chão, pra irmã não chupar, quando a bisa veio com a ameaça: acaba de nascer um ponto escuro no seu coração. Se quisesse um peito limpo de novo, precisava fazer algo bom, como pedir desculpas e beijar a irmã. Mas, se de tanta maldade o coração já estivesse todo manchado, não tinha volta: seria podre pra sempre.

“Velha louca.”

O rádio toca alto. Ele gosta do trabalho. De ver os carros na margem enquanto segue outro ritmo. Nem o fedor do rio incomoda. Passa o dia na merda, sim, mas quem não passa?

O problema é depois. Tem medo de carregar o cheiro no corpo.

Cheiro de mexerica também gruda.

Há cinco meses, parou de pegar ônibus. Ficava confuso entre os odores de sabonetes, suores, salgadinhos e colônias, então decidiu trabalhar de bicicleta. Nem é tão longe, e pode se lavar no próprio banheiro, com calma, e não no vestiário da firma.

Pedala uma hora pra ir e uma pra voltar.

Em casa, deixa as botas no chão perto da porta. Tira a roupa ao lado do tanque, lava o macacão e as cuecas, pendura tudo no quintal e anda nu até o chuveiro. Aproveita a espuma do cabelo para limpar o rosto, as orelhas, o pescoço. Depois passa o sabonete em movimentos verticais, com cuidado para cobrir toda a pele, e se esfrega com uma esponja. Nas mãos, segue as instruções que viu no banheiro do posto de saúde.

Não cozinha, prefere ir ao bar. Cumprimenta todos, mas senta sozinho. Bebe cerveja, come qualquer coisa e espera Ana. Ela aparece logo, vinda do ponto de ônibus. Sempre tem história da viagem. Agora é a do bebê que mordeu forte o peito de uma mulher que amamentava no trem. Ana ri, toma três copos de cerveja e os dois seguem para a casa dele. Ela prefere jantar lá, pão com queijo, e às vezes só toma banho depois de transar.

Ele gosta do cheiro de sexo que fica no quarto e em Ana. Mas, nesta noite, fareja a podridão do rio no corpo ao lado. O que não percebe no próprio suor, percebe nela. Está estragado para sempre, como temia que estivesse seu coração. Ou como o pulmão da bisavó, que fumava e morreu de câncer.

Mesmo assim, se levanta e toma banho. Chega a desligar o chuveiro, mas não lembra se esfregou todas as áreas necessárias, então repete os procedimentos. Volta para a cama e ainda está acordado quando Ana sai lavada do banheiro. Por baixo do sabonete, permanece nela o cheiro do rio.

Antônio demora a pegar no sono, mas acorda às 5h, antes do despertador, com tempo para passar um café. Ela já está levantada. Depois de comer e escovar os dentes, os dois saem juntos, se beijam rápido no portão e seguem em sentidos opostos.

Na firma, Antônio bate o ponto, pega o rádio e anda até o píer. O chão está molhado, mas a chuva parou e parece que não volta. Se escorregasse,  ele poderia morrer ali, com o corpo cheio d’água. Ou já está mergulhado? Embarca para trabalhar.

Mais tarde, na bicicleta, volta a sentir o rio. Pedala mais rápido, mais rápido, mais rápido, aproveita o vento no rosto e chega em casa sem fôlego. No chuveiro, repete a lavagem três vezes.

Vai para o bar. Deixa o tempo passar, para ver se Ana aparece e para adiar a volta para casa. Apesar de beber mais do que de costume, não está bêbado quando o homem da mesa ao lado, vizinho de rua que ele cumprimenta todos os dias mas com quem nunca conversou, pergunta sobre a ausência de Ana. E, rindo, sobre o rio.

No instante seguinte, o homem da mesa ao lado está morto.

Com a garrafa quebrada na mão, Antônio corre duas quadras. Depois para, porque a água podre não vai mais embora.

Foto: Fernando Stankuns / Flickr

Foto: Fernando Stankuns / Flickr

Uma ausência no trânsito

Todo dia, quando o ônibus passava na frente da papelaria, ela via o vendedor de camisa branca. Estava acostumada àquela presença como estava acostumada à banca de jornais na frente do terminal de trem, à árvore no meio da praça sempre vazia, ao desenho de um hambúrguer na fachada da lanchonete. Tudo parte da paisagem do caminho para o trabalho.

Já tinha tentado ler no trajeto, mas enjoava, não dava certo. Melhor olhar pela janela. Qualquer mudança chamava atenção: revistas novas na banca, uma loja que fechou, um muro derrubado, um homem dormindo na calçada. Um dia, o moço da papelaria estava sozinho, apoiando as mãos no balcão; outro dia ele mostrava qualquer coisa para uma cliente; ou fumava do lado de fora; ou ria, conversando na soleira da porta com uma funcionária do salão de beleza. E um dia ele não estava lá.

A passageira percebeu. Mas menos de um minuto depois já tinha esquecido o moço de camisa branca. O ônibus seguia, e pela janela passavam o carrinho de doces na porta da escola, a pintura que imitava pedras na fachada da oficina mecânica, um balcão com calcinhas a sete reais. Estava precisando de calcinhas novas, quem sabe ali não fazia um bom negócio.

Acontece que no dia seguinte o moço da camisa branca também não estava na papelaria, nem no outro e nem no outro. Atrás do balcão só se via uma loira de camisa branca. E a passageira se pegou pensando no moço, desta vez por mais de um instante. Quando percebeu que estava preocupada, ficou brava. “Ridículo!” Falou em voz baixa — e ficou ainda mais constrangida e nervosa quando percebeu que falou.

Tentou encerrar o assunto. O cara deve estar de férias. Ou não. Ou casou, ou foi cuidar da mãe doente no interior, ou foi demitido, ou ganhou na loteria. Ou morreu. E nada disso interessa, porque ele é um estranho. Estranhos nascem, brigam, procriam, morrem e a gente nem fica sabendo. Se fosse se preocupar com a vida de qualquer um que cruzasse seu caminho, ficaria louca. E, se fosse para se preocupar com alguém, que fosse com o homem que dormia estendido na calçada.

Mas, a partir desse dia, o trajeto do ônibus mudou. A paisagem sumiu, ocupada por uma discussão mental sobre o moço. Sobre o que teria acontecido com ele. Sobre como era inútil pensar nele. Sobre como era melhor pensar no céu azul, na festa da colega, na gata dormindo no sofá de casa. De vez em quando, pensava no céu azul, mas aí percebia que tinha esquecido o moço, e tudo voltava.

Pensava tanto que mal viu quando o moço reapareceu na papelaria. Tomou um susto. Nem tinha certeza se tinha visto certo quando se levantou, gritou “Motorista, para por favor” e correu até a porta. Ao pisar na rua, lembrou que nunca, nos oito anos em que pegava aquele ônibus, tinha descido no meio do caminho. Andou uma quadra até a papelaria. Entrou, viu o moço de perto pela primeira vez, passou para trás da bancada cheia de lapiseiras e o abraçou bem forte, por vários segundos. Só então, chorando, falou: “Tive tanto medo de que a gente não conseguisse se despedir”.

Pela Janela - Foto: Tahiana Máximo

(Foto: Pela Janela, de Tahiana Máximo, no Flickr)

Boa noite

Foto: Boris Mann em Flickr“Ela vai ficar tão triste. E bem que me avisou.”

Do banco traseiro do carro, dava para ver o cabelo castanho ondulado da mãe, solto atrás e enroscado na gola do casaco do lado direito. Ele sentiu um aperto. Olhou pela janela, começou a ler em voz alta. “Bilhar Augusta. A Arte da Boa Mesa. Retificadora Flora.”

“Tudo bem na escola, Antônio?”
“Tudo.”
“Muita lição de casa?”
“Não.”

Tinha, mas não ia fazer. Pra quê? Sentiria saudade também da tia Iara, nem achava tão chato quando ela passava lição. Mas não ia mais fazer.

“Só Botas. Pão Gostoso. Você com Saúde.”

“Ei, tá pensando na morte da bezerra? Chegamos, filho!”

Desceu do carro, mochila pendurada no ombro direito, e subiu direto para o quarto.

Carminha, que dormia enrolada em cima do baú de brinquedos, se espreguiçou devagar, bunda para cima e patas dianteiras bem esticadas. Fez carinho na cabeça da gata. “O baú vai ser só seu, Carminha.”

Pegou o cacto que ficava na janela e foi até a pia do banheiro regar a terra. Voltou com o vaso ainda pingando. Jogou dentro dele os cinco tatuzinhos que tinha recolhido no pátio da escola e guardado no estojo de lata. Viu Carminha cheirar os bichos, que não se mexeram, e logo perder o interesse.

Em cima da cama, brincou um pouco com o carrinho vermelho, presente do pai. Leu a última história de um gibi. Na frente do espelho da porta do armário, engoliu saliva uma, duas, três vezes, tentando perceber algo diferente.

Desceu para a cozinha. A mãe esquentava vagem refogada no fogão. No forno, torta de sardinha.

“Mãe?”
“Diga, filho.” Ela mexia a panela. “Antônio?”

“Demora?”

“Tá quase, pode ir lavando a mão.”

Estava bom, e tinha morango de sobremesa. Depois, os dois viram novela no sofá da sala. Durante o intervalo, o coração de Antônio bateu forte. O ar faltou, a visão escureceu. Ele encostou a cabeça no ombro da mãe, fechou os olhos e, aos poucos, se acalmou.

Quando a novela acabou, foi escovar os dentes sem a mãe pedir. Deu um beijo de boa noite e foi para a cama, triste.

Acordou com a mãe chamando. Olhou em volta devagar e reconheceu as dobras da cortina amarela, os adesivos de estrelas no teto, o macaco que abraçava fotos dos pais na prateleira perto da janela. Ainda era seu quarto.

Como sempre, se arrastou para o banho, colocou o uniforme que a mãe tinha deixado em cima da cama, tomou leite com Nescau, comeu pão com requeijão, escovou os dentes, pegou a lancheira e a mochila. Saiu de casa preocupado porque não tinha feito a lição de português e ainda não tinha morrido.

Então viu o ponto branco no chão do carro. Será? Sim, era o chiclete. O chiclete que ele comprou escondido da mãe, com o dinheiro que ela deu pro lanche. Um lanche especial, da cantina. O chiclete que ela disse que ele não podia mascar. Porque chiclete faz mal pros dentes e é perigoso. O chiclete que ele comprou mesmo assim. Comprou no recreio, escondeu no bolso e, no meio da aula, tomou coragem para tirar do papel e colocar na boca. Mascou com cuidado, devagar, saboreando o suco de cada mordida. Guardou, já sem gosto, na bochecha direita, na esquerda, debaixo da língua. Aproveitou o segredo até que, dentro do carro, na volta da escola, percebeu que não tinha mais nada na boca. “Engoli.” Ia morrer sufocado. E não podia contar para a mãe que tinha comprado o chiclete.

Agora, ao descer do carro, Antônio sorria. Não morreria mais. A partir de hoje obedeceria a mãe em tudo – não pularia o muro para a casa do Pedro, não daria pedaços do bife para a Carminha nem leria escondido depois que a mãe fechasse a porta do quarto à noite. Só parou de sorrir quando viu a tia Iara e lembrou da lição de português.

(Foto: Boris Mann em Flickr)

Elevado

Foto: Denilson TakedaDeus, aquele falastrão, agora é um zunido indistinto como o silêncio.

Nada de motores, marteladas, vozes. Inútil buzinar: o homem no viaduto não escuta. Com a cabeça agigantada pelo embrulho de trapos, ele tem forma e ouvidos de flor. Sob pétalas de pano, o corpo haste anda ereto, riscado por costelas e manchas recentes e remotas de ruas e poças e praças e refeições que se misturam na pele como na memória. Os motoristas que passam não veem os olhos. Nem os cabelos, a boca, o nariz que aparecem nas frestas dos tecidos desbotados. Desviam os carros, assustados com aquela presença suja e inesperada na contramão.

Não percebem a expressão satisfeita, o passo resoluto, o tronco projetado para a frente, as narinas dilatadas de excitação. Pés descalços, short roto. A cidade é um tapete áspero, mas, agora, mudo. Quanto tempo gastou na amarração? Não importa, porque valeu. Estava certo em insistir na busca pela toalha amarela. Faltava um elemento, e era esse. Amarelo como o tergal empelotado da colcha florida dos pais. Como o sapato, com lustre de quindim, do primeiro aniversário da menina. A camisa marrom, o lençol cinza, o retalho esverdeado e agora a toalha amarela. No meio dos panos enrolados com precisão, já não escuta. Sozinho, enfim, o homem segue em paz.

Foto: Denilson Takeda em https://flic.kr/p/cLEVnq